COVID19: impacte e desafios

Autor(es)
Carla Nunes
Diretora da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa
A COVID19 trouxe um desafio enorme ao mundo, num movimento rápido e completamente devastador. Em 3 meses, no caso de Portugal, o país estava fechado em casa, a economia em baixo, e os serviços de saúde a reorganizarem-se para um possível cenário dantesco. Este é um desafio de Saúde Pública (SP) que, infelizmente, mostrou qual o impacte que uma verdadeira crise nesta área pode ter. Poderia escolher inúmeras perspetivas para refletir, tendo optado por duas áreas complementares: uma reflexão ao nível global do impacto da COVID-19, que abordarei através dos objetivos do desenvolvimento sustentável, e outra focada numa das principais lições pandemia - necessidade de uma SP ainda mais reforçada, que obviamente leva à necessidade de mais e melhores (no sentido de com competências mais abrangentes e atuais) profissionais de SP.
Começo então pela reflexão ao nível global do impacte da COVID-19, através dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Mas o que são os ODS?
A 25 de setembro de 2015, foram definidos 17 ODS, adotados pela quase totalidade dos países do mundo, no contexto das Nações Unidas (193 países), em áreas que afetam a qualidade de vida de todos os cidadãos do mundo e daqueles que ainda estão para vir. Através deles, procuram-se definir as prioridades do desenvolvimento sustentável global para 2030 (agenda 2030), como o lema “não deixar ninguém para trás”.
A minha reflexão, nesta primeira parte, tem 3 assim dimensões: Saúde Pública (sempre!), COVID-19 e ODS. Vejamos: Aparentemente e diretamente, apenas um ODS se refere à saúde (nº 3 - Saúde e Bem estar – Garantir uma vida saudável e promove-la para todos em todas as idades), mas tendo a saúde inúmeros determinantes, ela (saúde) está realmente presente em muitos (ou mesmo em todos) ODS e com o duplo papel de vítima ou de agressora. A COVID19 veio ainda reforçar a importância e os desafios da SP.
Analisemos este fenómeno na perspetiva dos 17 ODS, mas usemos como referencial a sua organização nos já famosos 5 P: Pessoas, Prosperidade, Planeta, Paz e Parcerias.
Cinco dos 17 ODS são focados em Pessoas, ou seja, na luta contra a pobreza e a desigualdade, a garantia de uma vida saudável, o acesso ao conhecimento e a inclusão e o empoderamento de mulheres e crianças (ODS 1, 2, 3, 4 e 5). O segundo P, de Planeta, inclui também 5 objetivos com áreas como água e saneamento, consumo sustentável, combate às mudanças climáticas e proteção dos ecossistemas marinhos e terrestres (ODS 6, 12, 13, 14 e 15). Na prosperidade, também com cinco ODS, pedem-se novas estratégias para empresas, finanças e desenvolvimento socioeconómico sustentáveis (ODS 7,8,9,10 e 11).
Os P de Pessoas e de Prosperidade são, na minha opinião, os maiores desafios COVID-19, aqueles que são mais diretamente afetados por esta pandemia e a interligação entre eles é tão forte que promove uma discussão conjunta (Saúde e Economia, com um forte contexto de desigualdades). Os determinantes sociais, que se relacionam com questões de natureza económica, têm um impacto direto na pobreza, na fome e na educação. Como se pode acabar (ou pelo menos diminuir) a pobreza em todas as suas formas e em todos os lugares, (a fome, por exemplo) ou garantir igualdade no acesso à educação, se já sabemos que mais pobres, com menores condições de habitação, menores condições de higiene, também têm maior risco de infeção e maiores perdas de rendimentos? E o caso da educação? Agora com escolas fechadas e, em alguns casos, com ensino à distância, dependente de existência de computadores, de internet, de literacia digital e de apoio dos pais!
Na parte da prosperidade: energia para todos, promover o crescimento económico sustentado, inclusivo e sustentável, com emprego pleno e produtivo, fomentar a inovação, a desigualdade dentro dos países e entre eles, melhores as condições de vida. Como é possível? O foco está noutro lado neste momento.
E no Ambiente? Aparentemente é o que tem mais impactos positivos, pois temos menor mobilidade, logo menor consumo de recursos energéticos e menos poluição. Mas, até aqui, já há 1 alerta: o foco na COVID-19 é tão forte, que todos os outros assuntos perderam importância relativa, com um menor compromisso e com menos investimento a todos os níveis (reciclagem e sensibilização, por exemplo).
Os 2 objetivos que faltam referir são o 16 e 17, relacionados com Paz e Parcerias. A Paz (ODS 16): a história já nos ensinou que esta é facilmente posta em causa em momentos de crise económica, com uma diminuição da solidariedade e a necessidade de encontrar culpados para muitas situações, que podem ser grupos específicos usualmente mais vulneráveis ou, no limite, países.
Para terminar esta primeira parte, e se tivesse de escolher o ODS mais importante neste tempo COVID, escolheria o 17 – Parcerias. Parcerias porque com elas podemos combater, ou pelo menos minimizar, por exemplo os impactos das desigualdades socioeconómicas – que como já vimos impactam diretamente em muitos ODS. Precisamos de parcerias, no sentido verdadeiro da palavra “Relação de colaboração entre duas ou mais pessoas com vista à realização de um objetivo comum.”, colaborações entre pessoas, empresas, sociedades civis, organismos públicos e privados, a nível local, nacional, internacional e Global. O nível global é imprescindível pois este é mesmo um desafio do Globo, e não de alguns países, locais ou grupos de pessoas. É verdade que nos afeta a todos de forma diferente, mas apenas se pode resolver com uma intervenção a nível Global. Precisamos mesmo de catalisar a solidariedade global para um desenvolvimento sustentável, num tempo ainda mais difícil - o tempo COVID-19. Não estou certa se este será o ODS mais importante, no sentido de ser positivamente reforçado, ou o mais afetado negativamente, pois, tal como já referido no ODS 16- Paz, vemos as medidas a serem tomadas a nível nacional, com alguns atos discriminatórios entre países e com populações específicas. Espero estar enganada!
Pela parte positiva, pensamos agora no que podemos aprender com esta pandemia: a lição mais forte é que a saúde pública necessita de ser reforçada e, logo em primeiro lugar, isto significa mais e melhores recursos em saúde pública. Refiro-me a todo o tipo de recursos: humanos, infraestruturas, tecnológicos, etc.
A saúde pública, uma das áreas mais velhas do mundo, tem agora, infelizmente uma nova posição mundial. Esta pertinência traduz-se numa importância para as pessoas, sociedade, economia, autarquias e governos, que se reflete na necessidade de formação específica e emprego. Como podemos preparar a nossa sociedade para estes eventos? Mais profissionais, mais médicos de saúde pública e mais médicos de outras especialidades, mas também mais profissionais de outras áreas, que façam formação em Saúde Pública.
Pensemos na formação de profissionais de Saúde Pública, no seu contexto mais amplo, e iniciando logo pela sua pertinência. Se há uns tempos esta era uma área com uma menor atenção, a todos os níveis (pessoas, organizações, países, economia, etc), tivemos agora uma demonstração do que um problema de saúde publica pode fazer em todo o mundo, em poucos meses. A importância da saúde pública sai obviamente reforçada, com necessidade de algumas adaptações e atualizações. Especificamente ao nível do ensino, esta área das doenças infectocontagiosas estava, pelo menos nos chamados “países mais desenvolvidos”, um pouco esquecida, dada por exemplo a importância crescente das doenças crónicas, nomeadamente as relacionadas com o envelhecimento ou com estilos de vida pouco saudáveis. E quais as áreas em que precisamos de competências em SP? Para mim é fácil identificá-las, se eu pensar na formação base dos nossos docentes, investigadores e alunos: médicos de saúde pública (na linha da frente na organização de todos os serviços de vigilância e definição e implementação de medidas), médicos em medicina geral e familiar, médicos de saúde ocupacional, estatistas, epidemiologistas, direito e bioética, psicólogos, psiquiatras, sociólogos, gestores, economistas, comunicação, engenheiros, entre outros. Todas estas áreas são fundamentais em SP e a necessidade de profissionais de todas estas áreas, mas que tenham formação avançada específica em SP, é agora ainda mais evidente. A COVID-19 é, infelizmente, uma fonte quase inesgotável de experiência e aprendizagem para todos os profissionais que trabalham em Saúde Pública, que nos leva a priorizar novas áreas e novos desafios.
Lisboa, 3 de junho de 2020