Covid 19: o grande desafio
Autor(es)
António Taveira Gomes
Presidente do Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde de Matosinhos
Médico e professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Chegou com algum aviso prévio, mas sem tempo. Nem se percebeu exatamente o que era e já havia doentes, pouco sintomáticos, a ter de ficar no hospital até cura. Impossível! A solução era a de sempre: estratificar os doentes e sempre que possível, isolamento em casa. Com condições. Os determinantes da saúde de sempre, à prova, uma vez mais a lembrar como ainda não resolvemos tanta coisa. Até fácil, mais organização e integração que outra coisa.
Mas mobilizou-se toda a gente. Na ULS de Matosinhos, a integrar mais uma vez tudo, com a autarquia envolvida desde sempre, tínhamos até testado a resposta para grandes catástrofes (curso MRMI), só não criámos este cenário. A seguir já haverá certamente.
Cedo se percebeu, de resto e mais uma vez sem qualquer novidade, que a comunicação e a definição de regras essenciais tinham uma importância capital. E duplicámos quase tudo! Havia as áreas Covid e as outras, com rotinas e equipamentos, práticas e fluxogramas diferentes. E com tudo isto o primeiro grande problema: a autoridade de saúde a ser efetivamente o que deve, e rapidamente a entrar num discurso mais político que técnico, e as normas a terem de ser adaptadas a cada local. O princípio da proteção individual acima da proteção comunitária. A máscara como falsa segurança para o próprio, quando devia ser a segurança dos outros em relação ao utilizador da máscara. O que traduz a eficácia da mesma se usada universalmente e permanentemente. E até mais depressa que o vírus SARS-CoV-2, transmitiam-se normas de toda a ordem, e de todas as Ordens Profissionais, chegando a trocar o risco dos profissionais (mais que razoavelmente controlado) por risco para os doentes. Era preciso andar décadas para trás para ver técnicas ultrapassadas a serem recomendadas.
Podemos dizer que as normas da DGS foram estruturantes, mas fomos sempre adiante: implementámos o uso obrigatório de máscara, universal e permanente, e a realização de teste para rastreio de Covid 19 para todos os doentes candidatos a internamento ou procedimentos invasivos. A confiança das equipas manteve-se sempre, apesar de ter havido dez por cento dos profissionais com Covid 19 ao longo do tempo. Assim percebe-se que o Hospital Pedro Hispano tenha tido o maior número de parturientes com Covid 19, e também a manutenção das estratégias de qualidade no período perinatal. Nenhum recém-nascido ficou à espera da mãe (e várias vezes pai também) até ser Covid 19 negativo para ir para casa, com medidas implementadas no que diz respeito ao controle eficiente da infeção Covid 19.
Também se percebeu rapidamente que a Covid 19 ficará presente nas nossas vidas durante meses a anos, e simplesmente não podemos deixar de as viver. O segundo problema foi este: não perder a qualidade conquistada e evidenciada ao longo do tempo, porque a Covid 19 impunha medidas radicais e absolutas; subitamente demos connosco a discutir o indiscutível, a reinventar o que está cientificamente estabelecido, e simultaneamente a falhar rotundamente na solução dos mesmos problemas de sempre: as pessoas e as suas circunstâncias. Estas, umas e outras, tiveram a dedicação da autarquia, testando-as, criando condições de isolamento quando as não havia, apoiando em todos os aspetos da vida: alimentar, medicamentos, apoio social e económico, mobilidade, etc.
O exemplo de outros países, nomeadamente Itália, demonstrou a falta de resiliência das organizações, que se repercutiu de forma aguda e intensa, nas pessoas, proporcionalmente às suas responsabilidades, mas nem sempre. Iniciámos uma preparação para o pior, esperando o melhor, que foi o que aconteceu. Mas não sem exageros, muito estresse e sofrimento. Num ciclo de autoalimentação, mas sem realidade que o sustente, ainda que se perceba a expectativa muito negativa. Mobilizaram-se milhões, com os protagonistas habituais, simplesmente porque são os que existem, e alguns a ter de aparecer sob pena de extinção. Como que a dizer, também temos normas e protocolos, opinião e legitimidade, para intervir na Covid 19. E todos eram agentes de Saúde Pública, não em cumprimento, mas em regras para cumprimento alheio. Nesta altura, a pandemia era muito mais de informação e contra-informação, que vírica, e novamente a mostrar o que o mundo atual é. Mas em velocidade de banda larga, em tempo real, com protagonistas em toda a parte, a disputar a autoridade sobre a Covid 19, ou sobre conhecimentos em relação à mesma. Nesta altura não havia como não ter de dizer que as normas estabelecidas eram as adequadas, e tudo o resto era uma maré de opiniões, que com o tempo e paciência, melhores marés viriam.
E veio a fase da convivência. Para nós, assumida na reorganização inicial, que se manteve no essencial e compatível com a retoma de atividade. No início de julho, na totalidade, em quase tudo! A retomar a atividade e a qualidade suspensa, pelo menos na vida das pessoas. Ainda não há normas sobre visitas, mas no nosso hospital já existem há um mês, com condições novas, mas existem. O que é vital para as pessoas que têm internamentos mais prolongados. A retoma de tudo. A Covid 19 tem a particularidade de demonstrar como estamos tão mal: primeiro demonstrou que afinal a economia humana polui e muito (inacreditavelmente ainda há incrédulos), a seguir que a mesma é indispensável para todos (é que podemos criticá-la, mas alimentamos essa economia); e finalmente precisamos tanto dela que financiamos poluição através dos mesmos grupos de influência.
Vemo-nos como as almas mornas e indiferentes, que Agustina Bessa-Luís refere, que só elas encontram no seu semelhante uma justificação das misérias fraternas, e perdoando-lhes, exigem o seu próprio perdão.
Matosinhos, 12 julho de 2020