COVID 19 – “Casa arrombada trancas à porta?”
Autor(es)
Patrícia Barbosa
Associação de Apoio a Profissionais do Hospital de Santa Maria
À partida, o título desta crónica poderia sugerir que na Casa de Santa Maria (ERPI e UCCI da Associação de Apoio a Profissionais do Hospital de Santa Maria), só ativamos o plano de contingência quando o problema já estava instalado. Mas não foi assim.
Foi criado por iniciativa da Direção, ainda em fevereiro, antes do aparecimento dos primeiros casos em Portugal, um grupo de trabalho para atualizar o plano de contingência que já existia para as ondas de calor e para definir os intervenientes e respetivos papéis. Em simultâneo, a avaliação de riscos foi também atualizada, para incluir os riscos biológicos.
Entre os últimos dias de fevereiro e a primeira semana de março (data dos primeiros casos na região norte), as medidas a implementar estavam definidas e foram colocadas em prática, o que se deveu ao trabalho minucioso da Diretora Técnica, Enfª Adelaide Lavado, também responsável pelo PPCIRA. Desde logo começando pela limitação dos horários das visitas e do número de visitantes, evitando assim contactos desnecessários quer com utentes quer com os profissionais.
A medida seguinte, aplicada logo na segunda semana de março e talvez das mais importantes para o controlo da situação, passou pela utilização obrigatória de máscara dentro da instituição, embora ainda não houvesse qualquer orientação das autoridades de saúde nesse sentido.
Efetivamente, as trancas da porta estavam a postos!
Eis senão quando dia 19 de março ao fim da tarde recebemos um telefonema a informar que um dos nossos utentes, que tinha sido encaminhado para a urgência hospitalar dois dias antes por agudização de uma das suas multipatologias (situação bastante frequente em doentes deste nível de complexidade), era COVID positivo.
Com todas as medidas a serem implementadas antes mesmo das orientações e recomendações quer da DGS quer da RNCCI, com todos os cuidados tidos e com uma supervisão muitas vezes apelidada de exagerada, ninguém compreendia como tinha sido possível: na verdade, a casa já se encontrava arrombada quando as trancas foram colocadas. Isso significa que o doente em questão, que tinha sido admitido nos primeiros dias de março transferido de um hospital da região de Lisboa, já havia dado entrada sendo portador do vírus.
Não houve, porém, qualquer suspeita da sua condição por nunca ter apresentado sintomas. Aliás, nenhum utente ou profissional havia manifestado qualquer sinal ou sintoma associado à COVID 19.
Após os primeiros momentos de choque, a reação foi imediata e organizada, supervisionada pelas direções clínica e técnica e acompanhada pela Direção e equipa médica: elaborar a lista de contactos, definir critérios de risco, selecionar casos suspeitos e contactar a unidade de saúde pública da área de referência. Neste ponto, importa salientar o papel fundamental dos médicos e equipas de saúde pública e particularmente no nosso caso, da Dra. Elvira Martins, que durante a fase mais complicada manteve connosco contacto diário, contacto esse que embora agora mais espaçado, se mantém periódico. Foi sob a sua orientação que agendamos e realizamos testes a todos os utentes e profissionais, detetando os casos positivos e intervindo com celeridade, de modo a evitar um surto dentro da instituição. Agradecer nunca será demais.
Se por um lado a situação representou momentos de grande angústia e preocupação, por outro permitiu atuar no sentido de validar as medidas que haviam sido definidas e implementadas. Apesar da pressão externa a que fomos sujeitos, não só pelos familiares compreensivelmente preocupados e que distantes e obrigatoriamente ausentes insistiam diariamente em informações, como pela própria comunicação social que questionava as ações tomadas e seus resultados, devido a uma denúncia confirmada pelas autoridades de segurança pública, também isso acabou por nos ajudar a criar a resiliência necessária para superar as dificuldades.
Graças a essa resiliência, mas sobretudo ao planeamento e operacionalização os casos positivos foram isolados e a situação controlada. Para tal contribuiu o empenho, esforço e dedicação dos profissionais e o espírito de união e entreajuda que se fortaleceu entre todos, independentemente das categorias ou profissões.
É, sem dúvida, aos profissionais que se deve, se assim podemos chamar, o sucesso obtido: foram eles que diariamente acompanharam os utentes, garantiram a sua segurança e bem-estar. Além disso, foram muito além das suas funções num período em que os utentes confinados aos seus quartos ficaram sem visitas, sem atividades lúdicas, sem a simples possibilidade de descer ao bar para tomar um café. Todavia, auxiliares, enfermeiros, terapeutas, assistentes sociais, psicóloga e animadoras não só cuidaram como se preocuparam, fazendo listas de necessidades, encomendando e comprando mimos, garantindo o contacto com familiares, muitas vezes recebendo do exterior em vez de um agradecimento, o sentimento de incompreensão pelas medidas de confinamento tomadas.
Hoje, num momento em que a situação está calma e pode dizer-se, para já controlada na nossa Casa, mas em que nada é garantido devido à manutenção do estado de calamidade em algumas das freguesias muito próximas da área geográfica em que nos encontramos, deixamos um apelo aos nossos colaboradores: não descurem as medidas de proteção e a utilização dos equipamentos individuais. A correta utilização da máscara, as medidas de higiene nomeadamente a lavagem das mãos e a desinfeção dos espaços, a etiqueta respiratória e o distanciamento social são essenciais. Garantir que as trancas continuam à porta depende apenas de nós – os utentes continuam confinados, as visitas e atividades mantem-se suspensas – nós, profissionais, somos o único risco para os utentes porque circulamos na comunidade, nos transportes, nos serviços. Porém, se tivermos todos os cuidados que temos tido até aqui, esse risco é reduzido. Os nossos utentes, idosos e/ou doentes na sua maioria crónicos e com multi patologias são a população que se encontra em maior risco. Precisamos de continuar a contar com o esforço conjunto para protegê-los e para que as nossas portas não voltem a ceder à COVID 19.
Que lições retiramos, até agora?
- Que os profissionais são o elemento mais importante para garantir a segurança e proteção dos utentes;
- Que independentemente de todas as medidas e de todos os cuidados, haverá sempre vozes que se manifestam contra, mas que contribuem para a nossa resiliência;
- Que fazer é mais importante que falar e que por isso, planeamentos e operacionalizamos sem fazer disso bandeira;
- Que é nos problemas que vemos com quem podemos contar – e que boas surpresas temos tido, apesar de tudo.
Resta-nos não baixar os braços e manter o planeamento e operacionalização para preparar o inverno que não tarda está à porta.
Lisboa, 19 de julho de 2020