ORGANIZAÇÕES LITERADAS, LITERACIA EM SAÚDE E BOAS PRÁTICAS EM TEMPO DE PANDEMIA - AO ENCONTRO DOS OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

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Organizações literadas, literacia em saúde e boas práticas em tempo de pandemia - Ao encontro dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
em 2020-08-19 Ano: 2020
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Autor(es)

Cristina Vaz de Almeida

Diretora da Pós-Graduação em Literacia em Saúde, ISPA

Em geral, as pessoas estão hoje mais saudáveis, mais ricas e vivem mais tempo do que há 30 anos (WHO, 2008). Esta visão de construção de uma sociedade melhor e mais saudável não inibe a nossa capacidade de avaliação sobre o que ainda pode ser feito e das limitações e desafios que existem, sobretudo numa situação de pandemia.

No imprevisto dos acontecimentos provocados pelo surgimento da pandemia de COVID-19, doença provocada pela infeção pelo coronavírus SARS-CoV-2, são de realçar os esforços conjuntos e as boas práticas de equipas de profissionais das organizações de saúde e sociais, que contribuíram efetivamente para uma melhor literacia em saúde. Isto é, um contributo mais eficaz para uma melhor acessibilidade aos serviços e à informação, uma melhor compreensão da informação em saúde, tantas vezes complexa mesmo para os mais literados, e o seu correto uso com vista a uma sustentabilidade da pessoa, comunidade e sistema. 

A Organização Mundial da Saúde (2019) recomenda esforços para aumentar a literacia em saúde, para se atingir plenamente a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Verificamos assim, um alinhamento de muitas organizações de saúde e social de Portugal aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de uma forma evidente, sobretudo em relação ao envolvimento das partes multidisciplinares (instituições, empresas e academia); da partilha de exemplos de boas práticas de intervenção e de trabalhar as evidências do que funciona, em que contextos e as suas razões.

Também o financiamento da saúde, essencial para combate à pandemia foi obtido no passado mês de julho 2020. A 11 de agosto de 2020 a Comissão Europeia anuncia o apoio de 128 milhões de euros a 23 novos projetos de investigação sobre coronavírus, ao abrigo do programa Horizonte 2020. Estes projetos envolvem 347 equipas de investigação de 40 países, incluindo 34 participantes de 16 países fora da EU (Comissão Europeia, 2020). Precisamos de acompanhar e monitorizar estes projetos e resultados dos mesmos no combate à pandemia.

Esta análise incide essencialmente numa partilha, não exaustiva, de boas práticas para ultrapassar os obstáculos trazidos pela pandemia, que revelam um trabalho conjunto de “partes multidisciplinares” e de “evidências do que tem funcionado bem” pretendendo-se uma abordagem holística incorporando as diversas identidades, conexões, e soluções do que pode ser feito e repetido, indo por isso ao encontro dos ODS.

A imposição de um estado de confinamento, essencial ao controlo da progressão da pandemia (Direção-Geral da Saúde, 2020) mostrou que as organizações se conseguem de forma proactiva e colaborativa, e muito rapidamente, dar respostas na procura da satisfação, saúde e bem-estar dos seus pacientes, através da manutenção, proximidade e continuidade dos serviços.

Em tempos de COVID-19 observamos e constatamos, que apesar de muitas das intervenções, serem recentes na história das organizações de saúde e sociais, têm tido resultados favoráveis para o bem-estar dos seus destinatários (Kottke, Stiefel & Pronk, 2016) quanto à saúde física, psicológica e emocional dos indivíduos (OMS, 1986). A prática repetida proporcionará um caminho melhorado de eficiência e melhoria de resultados. Dado o espaço limitado para a análise, abordaremos nesta reflexão apenas cinco pontos: 1) o redimensionamento da consulta presencial; 2) o reforço da teleassistência; 3) a saúde móvel; 4) o entretenimento e cultura e; 5) o combate às fake news.

1. O redimensionamento da consulta presencial em serviços de telesaúde eficazes

Foram várias as práticas que surgiram em tempos de pandemia, que mostraram a robustez das equipas de saúde e sociais na transformação das consultas presenciais em consultas á distância, através de telemóvel, suportes digitais com as plataformas Zoom, Teamworks, Skype e outras. Estas formas de consulta à distância, seja nível hospitalar, seja em cuidados de saúde primários, permitiram o seguimento atento, a continuidade de tratamentos, a tranquilidade maior dos pacientes com decréscimo da sua ansiedade, e a sua satisfação.

A Organização Mundial da Saúde (WHO, 2020) refere que as soluções digitais de saúde podem revolucionar a maneira como as pessoas conseguem padrões mais altos de saúde e acedem aos serviços, por forma a promover e a proteger sua saúde e bem-estar. Neste âmbito a WHO (2020) concorda com as oportunidades da saúde digital que permitem acelerar a prossecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) relacionados com a saúde e bem-estar, especialmente o ODS 3.

Existem relatos, sobretudo em meios de comunicação de massa e nos sites das organizações, de vários os casos de sucesso obtidos nas unidades hospitalares, nos cuidados de saúde primários e nas organizações sociais. 

Reconhecendo os inúmeros casos de reajustamento de consultas presenciais em consultas à distância, muito eficazes, salienta-se, a título de bom exemplo, as consultas por telemóvel, “teleconsultas” organizadas com os pacientes com baixa visão no Instituto Oftalmológico Gama Pinto (IOGP) feitas por médico e enfermeiro. Os resultados apontam para uma adesão eficaz, compromisso do paciente, e satisfação com o contato, diminuição da ansiedade, sensação de proximidade e um estado geral de melhor saúde mental. Em termos de literacia em saúde houve uma exigência maior de adaptação de uma linguagem mais clara, a utilização de técnicas comuns da literacia em saúde como o teach-back, o chunk & check e a repetição (Vaz de Almeida, Moraes & Brasil, 2020).

Também no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central (CHULC) as consultas em linha e por isso à distância promovidas pelas equipas de enfermagem (lideradas pela Enfermeira Susana Ramos) têm permitido, nas palavras desta Enfermeira chefe e especialista em literacia em saúde também “uma satisfação do profissional de saúde” com a “proximidade e a missão que assumimos desde sempre”.

2. O reforço da teleassistência e dos serviços de apoio à saúde (e ao social) pelo telefone

Foram várias as instituições que reforçaram as suas linhas de teleassistência, sobretudo com as populações mais fragilizadas como os idosos mais sós, as crianças e jovens em risco e mulheres vítimas de violência.

Um dos casos de teleassistência que opera no Concelho de Lisboa há vários anos, e com verdadeiro sucesso de integração da dimensão social e de saúde, é o serviço de Teleassistência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), promotora do princípio da colaboração integrada entre a área social e a área da saúde, vocacionada para a população idosa em solidão ou isolamento. Apoiada por assistentes sociais, que são verdadeiros promotores para a formação de organizações mais literadas, estes profissionais dão um apoio efetivo na manutenção do bem-estar psíquico e social, especialmente relacionado com as necessidades básicas de ligação destas pessoas idosas com o mundo, seja pelas conversas, como por assegurarem através de equipas no terreno, os cuidados de higiene e alimentação, fazendo as pontes necessárias com os cuidados de saúde.

Também a Câmara Municipal de Lisboa cria em maio 2020 o serviço "Liga-te", gratuito, disponível através do número 800 916 800, 24 horas por dia, com a “colaboração da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica que, com a Câmara Municipal de Lisboa, garante uma seleção rigorosa dos psicólogos clínicos (CML, 2020). Uma vez mais vemos uma sintonia entre a saúde e a ação social.

3. A saúde “móvel”

Diz o ditado que “quando Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé”: quando os pacientes não podem ir/deslocar-se à saúde, é a saúde que vai/se desloca aos pacientes.

Mais uma boa prática que juntou a área social à saúde, promotora de organizações verdadeiramente literadas e responsáveis no acesso e uso dos serviços de saúde e sociais. Alguns municípios portugueses ativaram as suas unidades móveis para conseguir ultrapassar a dificuldade de deslocação e movimentação da população. A título de bom exemplo, o caso da parceria estabelecida entre a Comunidade Intermunicipal (CIM) da região de Coimbra, a ARS Centro e os Municípios de Condeixa-a-Nova e Montemor-o-Velho no projeto piloto de política de coesão da UE "Unidade Móvel de Saúde na Região de Coimbra".  Dois veículos foram equipados como unidades móveis de saúde para população dando suporte especialmente às pessoas, famílias e grupos mais vulneráveis, com a presença de equipes multidisciplinares nas áreas de saúde, apoio psicológico e social. O objetivo é estender os benefícios do projeto para as restantes áreas do CIM com vista a uma maior qualidade em saúde e assistência social em casa.

4. O entretenimento e a cultura como forma de combate à pandemia

O que seria das nossas vidas sem a música, sem a arte? Um vazio imenso, sem cor, sem brilho, sem emoção.

A cultura e as artes são, desde sempre, um fator promotor do bem-estar e da estabilidade emocional das pessoas. 

Já nos ghettos (ex. de Varsóvia), durante a II Guerra, as pessoas em carências extremas, juntavam-se na clandestinidade para cantar e ler, pintar, para amenizar a sua dor. Um exemplo disso pode ver-se no conjunto de trabalhos de pintura no museu Museu Yad Vashem, de Jerusalém (https://www.yadvashem.org/museum/museum-complex/art.html).

A cultura através da música, da dança, da pintura tem sido um fator estabilizador social. Um investimento mais adequado e contínuo. Vimos durante a pandemia casos excelentes de artistas conhecidos e desconhecidos que deram voz e emoções aos outros, permitindo que a ansiedade fosse menor e as pessoas mais resistentes. A título de exemplo a música de Cristóvam  Andrà tutto benne é um dos casos paradigmáticos:

 “The plans we all had have all gone down the drain

Our lives were postponed, but I know in the end we'll be

Alright. We stand together as one, entre outros” (Misixmatch, 2020). 

Ou os murais feitos por artistas portugueses, como Vhils, com o de agradecimento ao trabalho dos profissionais de saúde, executado no Hospital de S. João no Porto (https://www.publico.pt/2020/06/19/p3/noticia/eis-mural-vhils-hospital-sao-joao-profissionais-saude-tambem-precisam-cuidados-1921173).

5. O combate às fake news

Com o aumento dos casos de COVID 19, com o posicionamento político de alguns países de não restrição e não confinamento, como os casos do Brasil e dos Estados Unidos, geradoras de notícias contraditórias nas redes sociais, ainda assim foi verificado um esforço acrescido de algumas entidades, tanto nacionais como estrangeiras, no combate às fake news  (Tandoc, Lim & Ling, R, 2018). 

As fake news provocam ondas de efeitos negativos em populações mais crédulas e com baixa literacia em saúde (Espanha, Ávila & Mendes, 2016) , que não têm a oportunidade de verificação da veracidade das notícias, surgida sobretudo em redes sociais, ou porque não acedem ou desconhecem os meios credíveis que trabalham para as contestar. 

A título de bom exemplo o site da agência LUSA (Lusa, 2020) promove a informação fidedigna relativa ao combate às fake news (https://combatefakenews.lusa.pt/). A LUSA refere que a “Comissão Europeia iniciou uma campanha conjunta com a UNESCO e a rede social Twitter para consciencializar os cidadãos para os perigos das teorias da conspiração divulgadas 'online', sobretudo no atual contexto de crise, propício à desinformação” (Lusa, 14 ago 2020).

Já em outubro de 2017, a Comissária Digital da UE, Mariya Gabriel estimulava este processo, quando convidou um conjunto de peritos para recolher opiniões sobre notícias falsas e desinformação em linha. Nessa altura foram sugeridas as seguintes medidas de melhorias nos seguintes domínios: literacia mediática e informativa; ferramentas para os utilizadores e os jornalistas combaterem a desinformação; garantias de meios de comunicação europeus diversificados e sustentáveis. Quando se elencam as dimensões da literacia (mediática, da saúde), sobretudo quanto ao acesso, compreensão e uso da informação, reconhece-se a literacia em saúde como um verdadeiro determinante da saúde (Vaz de Almeida, 2010). 

Lisboa, 2 de agosto de 2020


Referências
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