Covid-19 e a prova do algodão
Autor(es)
Jorge Félix Cardoso
Investigador do grupo COVIDcids da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
6 meses depois, a pandemia de covid-19 continua a ser um enorme teste às nossas sociedades. É previsível que o seja durante os próximos meses, pelo menos. Estando o nosso pensamento dominado pelo curto-prazo, à procura de soluções eficazes para os problemas do novo dia-a-dia, é importante aproveitar a covid-19 para perceber o que precisa de maior atenção no futuro. Há muitas dimensões da sociedade que não estão no centro das nossas conversas, mas que são essenciais para resolver este e outros problemas no futuro.
Podemos começar mesmo por aí: pelas nossas conversas. O debate sobre saúde em Portugal é dominado há muitos anos pelos grandes tópicos em que a rotura entre os diferentes partidos é mais óbvia. Entre eles, destaca-se a velha questão sobre quem deve prestar os cuidados que estão garantidos publicamente – se o Estado, se o privado, se uma de muitas combinações possíveis entre ambos. Não é um debate irrelevante, mas suga demasiada atenção, que depois falta para muitas outras questões que a pandemia veio expor, da necessidade de digitalização do sistema de saúde à necessidade de considerar todas as dimensões da saúde, incluindo os seus determinantes socioeconómicos.
Podemos começar pela digitalização. Ela é hoje mais necessária que nunca, não apenas por uma questão de melhorar a qualidade do serviço, mas agora para tornar algumas interações com o sistema possíveis. Apesar de Portugal não ser, felizmente, um mau exemplo a nível global no que toca a digitalização, estamos longe de ter uma infraestrutura digital no sistema de saúde. E até em coisas simples falhamos: veja-se que ainda agora, durante o mês de agosto, voltou a ser reformulado o boletim diário da DGS, mas continua a não haver um pequeno ficheiro .csv para ter os dados disponíveis num formato que possa ser usado por investigadores ou curiosos. Os relatos que foram existindo durante a pandemia acerca do funcionamento das várias aplicações em que os profissionais de saúde têm de registar dados, muitas vezes em duplicado ou triplicado, não abonam a favor da digitalização do sistema. A integração dos resultados de exames provenientes de prestadores privados também não, com a agravante de aí estarmos a falar, muitas vezes, da transmissão de dados sensíveis através de canais muito pouco seguros. No dia a dia, estamos a falar de problemas que limitam a capacidade do sistema e são “desperdício” de recursos humanos qualificados. Numa situação de emergência, em que os minutos contam e a análise da informação pode evitar surtos e as suas consequências, tudo se torna mais grave. Quanto tempo perdemos nos últimos anos a discutir a digitalização do sistema de saúde como uma prioridade?
A pandemia mostrou também o quanto estamos desatentos a riscos sistémicos. Isso é relevante para todos, mas especialmente na área da saúde. A comunidade de saúde global já há vários anos ia avisando para o potencial aparecimento de uma pandemia, mas os investimentos e as organizações não escutaram devidamente. Este foi um dos riscos sistémicos na área da saúde que se materializou, mas há outros, entre os quais quero destacar as resistências antimicrobianas. Segundo um relatório de 2019 do Banco Mundial, as resistências antimicrobianas causam já 700 mil mortes anuais, mas podem tornar-se uma das maiores causas de morte globais até 2050, matando 10 milhões de pessoas anualmente, um valor semelhante à atual mortalidade anual por cancro. Também em termos económicos o impacto das resistências antimicrobianas poderá ser devastador, com impactos globais superiores a um bilião (trillion, na notação americana) por ano a partir de 2030. Será que a pandemia nos fará prestar mais atenção a este tipo de ameaças? Poderíamos também referir as potenciais consequências de danos ambientais na saúde humana, das mortes por eventos climáticos extremos aos milhões de vidas perdidos anualmente devido à fraca qualidade do ar.
Isso leva-me a um outro aspeto que a pandemia tornou mais saliente: a interdependência da saúde e de muitas outras áreas da nossa sociedade. Sabemos que fracas condições de habitabilidade e precariedade laboral foram duas das razões que tornaram tão difícil controlar surtos na região da Grande Lisboa. Este é um caso claro de relações que, noutros casos, não são óbvias, mas estão bem estudadas. Teremos a capacidade de ver a saúde em todas as suas dimensões depois da covid? Teremos a capacidade de sensibilizar as outras áreas da governação e da sociedade para o seu impacto na saúde? Até aqui não a tivemos: veja-se a forma como se descartam responsabilidades sobre surtos em lares dizendo que certa competência é “da saúde” ou “da segurança social”, quando sabemos bem que as duas estão ligadas e precisam de gestão conjunta. É a atitude errada, sobretudo num país com escassez de recursos, onde os investimentos precisam muitas vezes de ser orientados pelo retorno esperado.
Apesar de tudo, olhando os números relacionados com a covid-19, em particular a mortalidade e as taxas de ocupação de camas no sistema de saúde, a gestão da pandemia por parte de Portugal (escrevo-o assim porque foi mesmo o país inteiro que tratou de colaborar para a gerir) parece ter sido de boa qualidade. Isso também deve ser uma lição, mas de natureza diferente: uma lição para valorizarmos o sistema de saúde que fomos capazes de construir nas últimas cinco décadas, sempre com restrições de recursos, mas sempre com capacidade e vontade política de as superar. Partimos de uma boa base para continuar a construir uma sociedade mais saudável e um sistema de saúde mais resiliente.
A covid-19 foi a prova do algodão que permitiu comprovar que muitas dimensões da nossa sociedade parecem bem, mas não estão. O meu desejo é que a pandemia permita tirar lições e orientar os nossos debates, o nosso investimento e os nossos incentivos para aquilo que mais importa.
Gaia, 23 de agosto de 2020