COVID-19: a incerteza e o risco
Autor(es)
António Silva Graça
Médico Infeciologista
A atual ameaça sanitária é o resultado da rápida disseminação de um vírus respiratório (SARS-CoV-2), identificado e dado a conhecer ao mundo em final de 2019; é provável que a infeção resultante - a COVID-19, existisse já há alguns meses, antes de ser reconhecida como uma infeção respiratória facilmente transmissível, que só foi possível controlar na região geográfica onde teve origem, recorrendo a medidas impositivas, enérgicas, de isolamento sanitário.
Em curto prazo a elevada contagiosidade desta infeção e a interconetividade global existente tornaram possível a sua disseminação a vários países de outros continentes, tendo surpreendido a rapidez e o efeito devastador como sucessivamente foram atingidos outros países da Ásia, primeiro, e depois praticamente todos os países da Europa, da América, e dos restantes continentes ... em apenas cinco meses! A incapacidade de reconhecer que o surto da China poderia vir a ter uma dimensão global foi a primeira evidência da nossa falta de preparação para lhe fazer frente.
Embora Portugal tenha sido afetado por ela nos primeiros meses do ano, aliás como todos os países da Europa, há que reconhecer que foi de certa forma poupado, pelo menos neste embate inicial. A nossa localização geográfica periférica, a implementação atempada de medidas gerais de confinamento, ou mesmo o encerramento das escolas, poderão ter retardado a sua disseminação. No entanto, admitimos que se o país não tivesse seguido de forma tão próxima as orientações da Organização Mundial de Saúde (O.M.S.), que demorou a aconselhar algumas medidas que poderiam ter reduzido de forma significativa a importação de casos (encerramento precoce de fronteiras, controlo da temperatura à chegada dos passageiros) e a transmissão viral (uso de máscara em locais públicos, fechados), a expressão desta onda inicial da pandemia em Portugal poderia ainda ter sido mais branda.
Como consequência, a pandemia de COVID-19 não atingiu o país de forma súbita e severa, com claro benefício para um Sistema de Saúde com fragilidades reconhecidas no nível de equipamento e capacidade de internamento em Cuidados Intensivos, e também para a sua população, pois com exceção dos mais idosos, nomeadamente se instituicionalizados, a morbilidade e a mortalidade foram pouco expressivas nesta fase, se comparadas com o registado nos países da Europa geograficamente mais próximos, afetados de forma dramática por uma onda que quase os submergiu.
Embora se admita que a emergência e a disseminação de novos agentes patogénicos, como este SARS-CoV-2, seja condicionada por fatores ecológicos, imunológicos e comportamentais, entre outros, o nosso conhecimento destes microrganismos, e da forma como se tornam agressores, é ainda parcial e incompleto; no entanto, é notório que os desequilíbrios dos ecosistemas facilitam a emergência, ou reemergência, destes microrganismos até então sem patogenicidade humana, por apenas existirem, circularem, num ecosistema animal. É provável que tenha sido essa a forma deste novo Coronavírus, até então um patogéneo animal exclusivo, aceder à espécie humana, num mercado de bens alimentares de origem animal, na cidade de Wuhan.
E como da interação entre os agentes patogénicos e o nosso sistema imunitário, poderão resultar diferentes respostas, este SARS.CoV.2 tem em alguns casos provocado doença fatal, enquanto noutros ela apenas tem sido ligeira ou até inaparente. Nas formas clínicas mais graves, sabemos que o vírus não se limita a atacar o pulmão, mas tem uma atuação eletiva sobre os vasos sanguíneos e uma ação perturbadora dos mecanismos de coagulação e da resposta imunitária. A COVID-19 pode não se revelar apenas como uma infeção respiratória, mais ou menos grave, mas assumir a forma de um quadro clínico multissistémico, extremamente grave, não só pela repercussão imediata em vários órgãos, mas ainda pelas suas sequelas.
Perante uma crise de Saúde Pública desta dimensão, há uma necessidade premente: preparar de imediato uma resposta que possa controlar a morbilidade e mortalidade das populações, que se antecipa poder vir a ser expressiva. Mas esta gestão de crise só será possível depois de identificado o risco, a ameaça, mobilizados os recursos necessários para enfrentá-la (capacidade de internamento geral e de cuidados intensivos, meios de diagnóstico, recursos técnicos, fármacos, etc.), e levantada uma organização que tenha a flexibilidade necessária para poder gerir uma situação em permanente evolução, e em provável deterioração.
Mas para avaliar o risco será necessário conjugar a estimativa da prevalência desta infeção (através de testagem diagnóstica alargada, e massiva), com a possibilidade de transmissão que, no caso da COVID-19, irá depender do tempo de exposição, da distância ao foco de infeção e à concentração viral no local. Mas haverá sempre que considerar três desafios: não ser infetado (e para garanti-lo será relevante a higienização das mãos e superfícies, e o uso de máscara), não infetar os outros (há que evitar a proximidade das pessoas, em particular dos mais vulneráveis, e de novo será importante o uso de máscara) e não vir a desenvolver doença grave. A superação deste último desafio não irá depender do comportamento do próprio, mas de condicionalismos que não controla: possuir um sistema imunitário robusto, não ter doenças crónicas, debilitantes, que predisponham para uma evolução desfavorável da infeção e ter acesso a um Sistema de Saúde também robusto, eficaz e protetor.
A conjugação das estimativas de prevalência e exposição, ajudarão a percecionar o risco em qualquer momento da evolução desta pandemia, e dar o suporte à decisão. Sem acesso facilitado ao conhecimento os decisores poderão abordar de forma menos eficiente, ou ineficaz, as questões relativas aos compromissos entre riscos, e entre riscos e benefícios, e tomar o caminho menos seguro.
Esta pandemia está a ser uma enorme ameaça a todos os países, e ao mundo. Ela representa a pior crise de Saúde Pública dos últimos cem anos. Mas para além do impacto imediato na Saúde e na Economia, as suas consequências far-se-ão certamente sentir ainda, e de forma prolongada, na Educação na próxima geração.
E embora se admita que o encerramento das escolas foi importante no controlo da pandemia, a sua (urgente) reabertura, em segurança, só será possível se a transmissão do vírus estiver previamente controlada, e houver capacidade de adaptação da Escola às exigências da Saúde Pública. É um desafio que irá exigir atenção permanente dos pais e dos educadores, e uma resposta célere das estruturas locais de Saúde, mas terá também de integrar um novo conceito de planeamento escolar, e um adequado suporte às famílias.
Difíceis serão ainda as decisões relativas ao retomar da Economia. As consequências de agir ou não agir podem ser ambas graves; há que ter em conta os benefícios e os riscos de todas as decisões e estar preparado para reconhecer alguns erros menores. Terá sempre de ser assumido algum risco de transmissão do vírus, de forma controlada, para que a economia possa também recuperar. Não será possível avançar sem se correrem alguns riscos, pois uma vacina efetiva, segura e universal, ainda tardará. E só ela nos poderia ajudar a encarar com serenidade um ressurgimento da pandemia nos próximos meses, ou mesmo uma segunda vaga a qualquer momento.
Até haver uma vacina, o distanciamento físico, a higienização cuidada das mãos e o uso de máscara irão continuar a ser necessários, e indispensáveis, para controlar a disseminação do SARS-CoV-2 na comunidade. Mas para além destas atitudes comportamentais, que irão a partir de agora fazer parte do nosso quotidiano, teremos de persistir na estratégia delineada para a fase de recuperação, de modo a evitar qualquer recrudescimento posterior: manter um rastreio dirigido que permita detetar e isolar os casos de infeção, e os seus contatos de proximidade, eliminando desta forma as cadeias de transmissão do vírus e os focos ativos da infeção.
No futuro, mesmo que estejamos mais atentos e melhor preparados, a emergência de novos patogéneos irá continuar a surpreender-nos, e a fazer com que voltemos ao ponto de partida: necessidade de meios de diagnóstico adequados, terapêuticas eficazes e uma vacina segura e protetora... sem eles será natural que a instabilidade social, a apreensão e o medo possam regressar.
Lisboa, 09 de setembro de 2020