Vozes'
Autor(es)
Artur Vaz
Administrador executivo do
Hospital Beatriz Ângelo (Sócio Institucional da APDH)
“Hoje foi internado o primeiro doente com Covid-19 nos Cuidados Intensivos e está a meu cargo. É um homem com 74 anos, hipertenso e diabético, com graves dificuldades respiratórias. O pouco que sei, o pouco que sabemos, sobre esta doença não me chega para lhe garantir um bom desfecho.”
Após a declaração pela OMS da pandemia de Covid-19, a 11 de março de 2020, entra em funcionamento o Gabinete de Crise. Junta a Direção Executiva, os Diretores dos Serviços mais relevantes para enfrentar a situação, o GCLPPCIRA, todos os enfermeiros Coordenadores. Reuniões diárias no Auditório, com máscara cirúrgica e distanciamento adequado. As reuniões são abertas, mas só a quem possa acrescentar valor às decisões tomadas todos os dias. Quando tivermos novas rotinas, passaremos a fazer apenas 3 reuniões por semana.
“Hoje foi o meu primeiro dia na ADC no Serviço de Urgência Geral. Gasto 10 minutos para colocar devidamente todos os EPIs recomendados e sei que, daqui a 6 horas, quando as retirar, vou gastar ainda mais tempo.”
As cadeias de abastecimento são vitais em períodos de crise. Ter os profissionais de saúde protegidos é o primeiro pressuposto para enfrentar o Covid-19. Pertencer a um Grupo com capacidade de abastecimento no mercado internacional é uma mais-valia nesta situação em que a procura por EPIs cresce à medida que a pandemia se espalha pelo mapa do mundo.
“Saí agora do turno da noite. Conduzo até casa e, esgotada, desabo sobre o sofá. Ligo a televisão. Trump e Bolsonaro continuam a encher o espaço com as afirmações cabotinas habituais. Como é possível que dois países tão grandes tenham líderes tão pequenos e ignorantes?”
A liderança é absolutamente essencial em momentos como este. Unidade de comando, gestão participada, comunicação clara e concisa, integração e articulação de medidas, implementação pronta. Há um tempo para discutir e um tempo para decidir e realizar. Com a garantia que, perante a incerteza avassaladora de uma situação nova, qualquer decisão pode ser revertida. A inflexibilidade é, numa situação destas, irresponsabilidade.
Enquanto a liderança da Direção-Geral da Saúde tem sido consensualmente bem avaliada, não se compreende a total ausência de coordenação hospitalar regional ou a aparente cacofonia das orientações emanadas pelos diversos colégios da Ordem dos Médicos, a qual ganharia em ter um GCLPPCIRA próprio que assegurasse a integração, adequação e suficiência das medidas de proteção dos médicos propugnadas para as atividades específicas de cada especialidade.
“Passei a noite a redesenhar todos os circuitos do hospital. Amanhã de manhã, logo que chegue, vou ter que os percorrer para confirmar que conseguimos ter dois hospitais dentro do hospital.”
Criamos dois hospitais onde antes havia um. Circuitos, espaços, equipamentos e recursos humanos dedicados aos doentes Covid, lado a lado com circuitos, espaços, equipamentos e recursos humanos próprios dos doentes não Covid. A segurança e qualidade dos cuidados valem mais do que a eficiência! Não podemos descurar os doentes não Covid, mesmo que, assustados, se tenham acantonado em casa e tenham medo de vir ao seu hospital! Consultas telefónicas, atividade programada circunscrita ao inadiável, visitas aos doentes suspensas (ainda bem que há tecnologia para minorar as distâncias).
“Há dois meses que não estou com o meu marido nem com as minhas filhas. Há dois meses que não os abraço! Tenho o meu colo vazio.”
A incerteza, a solidão, o temor, são fatores de tensão e esgotamento. É necessário fornecer apoio psicológico, científico e laboral para que, a qualquer hora do dia, os profissionais de saúde tenham a quem recorrer. O Grupo cria uma linha de apoio telefónico com estas valências para todos os seus colaboradores. “Tive um contacto com um caso positivo de Covid, o que devo fazer?”, “Estou esgotado e não sei para onde me virar!”, “O meu doente com Covid não está a reagir bem à terapêutica instituída. Que alternativas tenho?”, “Como posso beneficiar do apoio aos filhos durante o encerramento das escolas?”. Estas e centenas de perguntas semelhantes foram respondidas, transmitindo tranquilidade, conhecimento e informação prática.
“Saio do meu prédio silencioso e, na rua, encontro mais silêncio. Estou sozinho numa cidade fechada em casa.”
Saber que todos cumprem a sua parte é essencial para quem trabalha em saúde. A situação é gerível, com o ritmo de novos casos que o confinamento cumprido pela generalidade dos portugueses permitiu atingir.
“Nunca pensei passar por uma situação destas! Não há nada que nos prepare para isto! Agora dizem que somos heróis, mas eu limito-me a fazer o que sei e o que sempre fiz. Alguém tem que o fazer.”
Tivemos que aprender quase tudo, baseados em conhecimento empírico e recente. Formar e informar, partilhar problemas e soluções, reunir à distância. Webinars com profissionais chineses, italianos, espanhóis, americanos, franceses. Nunca o mundo foi um lugar tão pequeno!
As manifestações públicas de gratidão e respeito pela dedicação dos profissionais de saúde, agora alcandorados em heróis, como se o que fazem agora seja distinto do que sempre fizeram, sabem-lhes bem. Esperemos que perdurem!
Mas o fator crítico de sucesso é o empenho de cada médico, de cada enfermeiro, de cada técnico de saúde, de cada assistente operacional, de cada assistente técnico, de cada auxiliar de apoio geral, de cada gestor, de cada segurança, de cada senhora da limpeza, de cada um dos que, todos os dias, fazem do HBA o grande Hospital que é.
“A minha mulher testou positivo. Felizmente consigo que os miúdos compreendam a situação e que se mantenham afastados da mãe. Sei que entre o 9º e o 13º dia a situação pode agravar-se subitamente. Os meus dias são para contar os dias que faltam.”
A Covid-19 atinge todos. Até agora, cerca de 20 profissionais do HBA foram infetados. Estão todos bem, felizmente, em casa a recuperar. Há médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, entre os infetados. O coronavírus é insidioso e é obrigatório que os profissionais de saúde se protejam.
“São oito da noite. Hoje o jantar é especial. Foi oferecido pelo Beto, guarda-redes da Seleção! É bem melhor do que o que poderia ter comido no refeitório.”
Num país sem grande tradição de filantropia, onde a maior parte dos mais afluentes amealha a sua riqueza e a ostenta apenas em bens próprios, a generosidade do cidadão comum e das empresas é incrível! Tivemos de criar uma pequena equipa para gerir as ofertas de refeições, bens alimentares, produtos de higiene pessoal, viseiras e outros artigos oferecidos aos profissionais de saúde. Também das Autarquias recebemos apoio pronto e nunca regateado. A nossa lista de agradecimentos cresce todos os dias!
“Temos de voltar rapidamente à normalidade e os doentes têm de regressar ao seu hospital! Há gente a morrer com medo da Covid!”
A carga da doença não esmoreceu com o surgimento da Covid-19. Continuam a existir e a necessitar de cuidados hospitalares milhares de doentes crónicos e agudos que não podem ver adiados, por mais tempo, os cuidados e acompanhamento de que necessitam. Protejam-se os profissionais e protejam-se os doentes, mas temos de avançar. Não podemos manter-nos nesta twilight zone!
Ninguém sabe o que vai acontecer enquanto não houver uma resposta comprovada, vacina ou tratamento que nos proteja desta ameaça. Nem quanto tempo teremos de esperar para que tal se concretize. Todos conhecemos o conceito de normalidade, mas “normalidade possível” é uma invenção inspirada pela incerteza. Vamos viver meses em que faremos ajustamento sobre ajustamento, até encontrarmos a melhor combinação entre segurança para profissionais e doentes e eficiência e efetividade dos cuidados. Vamos enganar-nos por vezes, vamos ter de refazer os nossos passos sobre as pegadas que marcámos no caminho, vamos ter boas e más surpresas. Mas nunca, como hoje, estivemos tão bem preparados para os dias que o futuro nos reserva.
Hoje, 14 de maio de 2020, o HBA tem 50 doentes com Covid-19 internados, dos quais 8 na UCI. Dos 42 internados em enfermaria, 15 já tiveram alta clínica, mas não reúnem condições sociais e/ou domiciliárias que lhes permitam convalescer em casa. Destes 15, apenas 4 são autónomos e poderão, por isso, ser recebidos em estruturas residenciais na comunidade. Como sempre, a solução é mantê-los no hospital, a estrutura mais diferenciada e mais cara do sistema, como se, desmentindo a evidente realidade, Portugal fosse um país rico.
' A bold, extratos adaptados das muitas conversas com profissionais do Hospital Beatriz Ângelo
Loures, 14 maio de 2020