Crónicas de uma Pandemia: ninguém se salva sozinho
Autor(es)
Miguel Guimarães
Bastonário da Ordem dos Médicos
Nos últimos meses, desde que o mundo ganhou consciência de que a pandemia da COVID-19 estava longe de ser mais um vírus de passagem curta e de fácil resolução, foram-se multiplicando as posições de que a sociedade e a vida como a conhecemos nunca mais seriam as mesmas. Multiplicaram-se também os agradecimentos públicos e os projetos de homenagem aos que foram mais do que justamente considerados os heróis do momento: os médicos e os restantes profissionais de saúde que têm estado na linha da frente do combate ao novo coronavírus. Como disse o Papa Francisco, numa das orações que dedicou a estes soldados, “estamos todos neste barco. Ninguém se salva sozinho”. Esta emergência de saúde pública internacional com as caraterísticas que já conhecemos exige união, solidariedade e humanismo.
É certo que o guião é novo – e que até há pouco tempo praticamente ninguém conseguia antever que viveríamos assim os primeiros capítulos desta nova década. Mas será muito injusto não reconhecer que temos os heróis de “sempre”, trazidos agora para a ribalta. Com isto, não estou a menorizar o papel fantástico e comovente que os médicos, enfermeiros, farmacêuticos, assistentes operacionais, entre outros, têm tido nesta pandemia. Bem pelo contrário. Estão ainda mais expostos a riscos e mais afastados das suas famílias, para cumprir escalas impossíveis e não levar o risco para a casa onde vivem com os que mais amam. As marcas das máscaras na pele, os fatos encharcados pelo suor, as mãos esgotadas pelas soluções alcoólicas, são apenas as cicatrizes mais visíveis de um momento que nos está a marcar a todos como profissionais e como seres humanos. Mesmo quando não dispõem de equipamentos de proteção adequados, não se têm recusado a trabalhar, em nome do superior interesse dos doentes. De entre o total de infetados pelo SARS-CoV-2, pelo menos 11% serão profissionais de saúde.
Estou, como bastonário e como médico, profundamente orgulhoso e agradecido à classe que represento e ao espírito solidário e humanista que os médicos mais novos demonstraram ter herdado e que os mais velhos tiveram a oportunidade de recordar. Como sempre tem sido. Torna-se quase paradoxal como o lado mais humano e o papel dos médicos na sociedade passou a merecer honras de manchetes e telejornais quando as suas caras se encontram dissimuladas em equipamentos de proteção individual, que aqueles, não ligados ao setor da saúde, apenas conheciam dos filmes de ficção científica.
Não podia, por isso, deixar de lhes prestar um reconhecimento e homenagem públicos. Mas, da mesma forma, este é o momento para reforçar junto de todos – do poder político aos cidadãos – que os nossos serviços de saúde são essenciais todos os dias e que é para cuidar dos portugueses que reivindicamos investimento. Salvar vidas foi, é e continuará a ser sempre a nossa missão, mesmo em condições muito difíceis, como infraestruturas desadequadas, meios técnicos obsoletos e capital humano escasso para tantas solicitações.
Convém, por isso, recordar que esta crise nos chegou em cima de outras crises e de fragilidades que já eram conhecidas, mas que mereciam pouca atenção. Esta crise chegou-nos numa altura em que gastávamos, na saúde, menos de metade da média da União Europeia per capita, numa diferença de 1297 euros para 2609 euros, em paridade de poder de compra. Esta crise chegou-nos numa altura em que os médicos já faziam mais de 6 milhões de horas extraordinárias por ano e em que, mesmo assim, o número de inscritos em listas de espera para cirurgia tinha passado de perto de 192 mil pessoas em 2016, para mais de 245 mil pessoas em 2019, com 30% das consultas a serem feitas fora do prazo (tempo máximo de resposta garantido), mesmo em situações prioritárias ou muito prioritárias. Esta crise chegou-nos quando as mãos não chegavam para tudo e quando poucos ouviam os nossos gritos de alerta.
Ninguém se salva sozinho. Por isso, antes da pandemia, e agora também, enquanto Ordem dos Médicos quisemos continuar a ser uma voz ativa e positiva, fazendo recomendações e críticas construtivas sobre vários temas. Para isso tivemos de reorganizar a nossa forma de trabalhar e de deslocalizar os escritórios para as nossas casas e as nossas reuniões – ainda muito presenciais – para o recurso a plataformas online, com a vantagem de em muito pouco tempo termos conseguido desenvolver projetos de âmbito nacional com a presença remota de especialistas de todo o país, dando continuidade a temas não COVID-19, mas sobretudo procurando formas de contribuir para melhorar a resposta de Portugal à pandemia e de ir ao encontro do que sentíamos que o terreno nos pedia.
Da organização dos hospitais, à necessidade do uso de equipamentos de proteção individual adequados para os vários profissionais, passando pela insistência de generalização obrigatória do uso de máscaras pela população em todos os espaços onde não é possível o distanciamento social e pela defesa imperiosa da máxima “testar, testar, testar”, nomeadamente testar os profissionais de saúde regularmente, várias têm sido as nossas propostas e projetos em que nos envolvemos com toda a dedicação à causa de todos os portugueses.
Pela sua abrangência, não poderia deixar de referir o #TodosPorQuemCuida, um fundo solidário criado pela nossa Ordem, em parceria com a Ordem dos Farmacêuticos, com o apoio da APIFARMA, de outras instituições e da sociedade civil, e que está a permitir levar ao terreno os equipamentos e materiais que a tutela não tem conseguido assegurar na totalidade e que servem para prestar os melhores cuidados de saúde aos nossos cidadãos, o que passa por proteger quem cuida deles – seja na saúde, nas forças de segurança, bombeiros ou cuidadores. De destacar também o projeto Máscara para Todos, que se antecipou à legislação, promovendo uma ampla difusão da importância do uso de máscaras por todos nós, e explicando formas de uso e diferenças entre as máscaras ditas de uso hospitalar, as cirúrgicas e as comunitárias.
Para voltarmos à (nova) normalidade é preciso reconhecer que nenhum país se salva sem um sistema de saúde forte. São, como sabemos, vários os estudos e trabalhos académicos que vêm a demonstrar o impacto que a saúde tem na economia. A pandemia veio colocar tudo isto a nu, de forma impossível de duvidar. Temos a esperança de que a memória perdure e que possamos sair desta crise com a certeza de que aquilo que tanto os profissionais como os cidadãos têm reivindicado seja feito de forma estratégica: investir no Serviço Nacional de Saúde, investir na saúde dos nossos cidadãos. Sem saúde não há economia. Sem economia não há saúde. E ambas são necessárias para que sejamos uma sociedade equitativa, produtiva, justa e feliz.
Desenganemo-nos: quando a pandemia passar vamos precisar mais do que nunca de um sistema de saúde responsivo, organizado e próximo das pessoas que viram as suas vidas despedaçadas, a sua saúde mental perigar e as suas doenças crónicas por diagnosticar ou a descompensar por falta de resposta aos doentes “não COVID-19”. Aliás, todos os estudos conhecidos até agora sobre o excesso de mortalidade em março e em abril apontam para dados preocupantes, mostrando que os números estão acima dos outros anos e de meses comparáveis.
Como disse de forma brilhante John Donne, “nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado, todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
Esta pandemia está a representar também um hino à humanidade, a tornar-nos mais comprometidos com a existência do outro e mais solidários – evocando as palavras do Papa Francisco. Nenhum sino que dobrou durante esta pandemia pode ser visto como não sendo o nosso sino. Não vai ficar tudo bem, como prometem os arco-íris que inundam as notícias e a Internet. Mas contem com os médicos para que fique tudo o melhor possível, e para reforçar as lições que devemos retirar, para que nas crises inevitavelmente cíclicas que venham a acontecer no futuro passe a ficar tudo bem – com menos sinos e com música nas varandas por melhores motivos.
Lisboa, 24 maio de 2020