AMANHÃ NÃO PODE SER LONGE DEMAIS

Amanhã não pode ser longe demais
em 2020-06-01 Ano: 2020
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Autor(es)

Ana Rita Cavaco

Bastonária da Ordem dos Enfermeiros


Para a história ficará o momento em que País reconheceu, finalmente, o valor dos enfermeiros enquanto pilar fundamental do sistema de Saúde. É isso que levamos para contar aos nossos netos, o abraço coletivo de uma classe profissional que recusou deixar alguém sozinho quando um vírus decidiu alterar radicalmente as nossas vidas.

Na verdade, ficou claro que se todos cumprimos aquilo que a mãe da enfermagem moderna nos ensinou, ninguém ficará sozinho. Nem doentes, nem enfermeiros.

Florence Nightingale ensinou-nos que cuidar é uma arte. Se dúvidas existiam, esta pandemia desvendou os milhares de artistas que temos na linha da frente. E tal como acontece com qualquer artista, o reconhecimento nem sempre é uma consequência natural do resultado da obra.

Durante a Guerra da Crimeia, esta mãe da enfermagem moderna impôs a obrigatoriedade da lavagem das mãos e revolucionou as práticas de higiene nos hospitais de campanha britânicos. Passaram quase 200 anos. Hoje o mundo entende, melhor do que nunca, a obra desta enfermeira e o seu inegável contributo para a evolução da Saúde pública.

Foi preciso tempo para o mundo compreender o papel de Florence. Foi também preciso tempo para os portugueses entenderem o contributo fundamental dos enfermeiros. Bastou um vírus para transformá-los, aos olhos dos cidadãos, de bestas a bestiais. A verdade é que o tempo corre quase sempre contra os visionários, os artistas, aqueles que chegam antes do tempo.

Num sistema de saúde frágil como é o nosso, historicamente subfinanciado e politicamente desprezado pelos sucessivos Governos, parece hoje claro que os enfermeiros portugueses chegaram antes de tempo. O seu papel só agora começa a ficar claro aos olhos da opinião pública, mas só o tempo nos dirá se se fará justiça.

Quanto vale não deixar ninguém sozinho?

É esta a pergunta que deve nortear as decisões políticas de futuro no que diz respeito à Saúde. Há claramente um AC e o DC. Um antes da Covid-19 e um depois. Está na hora de corrigir erros antigos. O SNS não pode viver da boa vontade dos profissionais de Saúde. A enfermagem é de facto uma arte, mas não queiramos para os enfermeiros portugueses aquilo oferecemos durante séculos aos maiores dos artistas, a mão estendida e o reconhecimento póstumo.

A hora do reconhecimento é agora e as palmas não bastam. O tempo é de incerteza. Seremos nós, sociedade, capaz de impor uma alteração radical no que diz respeito à valorização dos recursos humanos no sector da saúde? Perdoem-me o ceticismo. Temo que não. Temo que todo o reconhecimento mediático dos enfermeiros seja, apenas, o grito de socorro perante a agonia. E quando ficarmos bem? E quando os nossos voltarem a casa curados, cuidados, bem tratados, prontos a começar de novo? Saberemos, nessa altura, parar e lutar enquanto sociedade pela valorização efetiva do trabalho dos enfermeiros? Gostava de acreditar que sim

Aprendemos, ou não, alguma coisa com este desafio? Percebemos, ou não, que a Saúde deve ser a prioridade máxima de qualquer Democracia? Se sim, chegou a hora de dotar o SNS de todos os meios capazes de combater não só esta pandemia, como de enfrentar os desafios do dia a dia. Quando a manta é curta, tapar a cabeça significa destapar os pés, e isso em saúde paga-se com vidas.

Portugal tem neste momento 20 mil enfermeiros emigrados. E que falta nos fazem! Partiram precisamente por falta de reconhecimento. Que ninguém tenha dúvidas de que os incentivos, monetários e não monetários, são decisivos na hora de fazer escolhas. Mas esses incentivos, mais do que quantitativos, trazem consigo uma mensagem política. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu na Suécia, Malásia ou Indonésia. Todos estes Governos decidiram valorizar o trabalho dos enfermeiros através de incentivos. Nestes casos, não se trata de prémio, mas de reconhecimento de valor, de justiça pelo trabalho de quem cuida. Na Suécia, o Governo decidiu mesmo duplicar o vencimento dos enfermeiros durante a pandemia.

Quando queremos contratar enfermeiros para a Linha da Frente por menos de 1.000 euros líquidos por mês, e garantir-lhes um contrato de quatro meses, estamos a dizer que esse é o valor de quem cuida quando mais ninguém quer cuidar. Que esse é reconhecimento que damos a quem deixa os seus para ir salvar os outros. Foi esse desinvestimento na Saúde que nos fez chegar aqui com o coração nas mãos. É esta página que precisamos de virar.

Pedro Barroso, que nos deixou, cantava que nunca é tarde demais para perceber, para acordar. Abrir os olhos e entender que nada poderá ser igual depois disto. Fomos chamados a cuidar uns dos outros, como nunca. Os governos não poderão voltar a olhar para a Saúde como a prateleira onde se arrumam os amigos, nem onde se justificam cativações.

Estaremos disponíveis para aceitar esta provocação? Se acreditarmos que sim, deixaremos de salvar bancos para proteger vidas. Deixaremos de garantir rendas suspeitas a parcerias de betão para investir nas pessoas que cuidam de pessoas. Recusaremos fazer da Saúde um negócio, para perceber que ela é nosso bem mais valioso. Essa seria a história que gostaria de contar aos meus netos. Era uma vez um vírus que mudou, para sempre, a nossa forma de estar, de sentir, enfim, de sonhar.

No coração dos milhares de enfermeiros portugueses estão guardadas outras tantas histórias. Eles são o testemunho vivo de um dos combates da nossa geração. Artistas, soldados, gente de carne e osso. Não importa a metáfora. Para eles, fica o meu mais profundo reconhecimento e agradecimento por não terem deixado ninguém sozinho. Eles sabem que podem contar com a Ordem para trilhar o caminho que falta. Para que a história não se repita, é preciso preparar o futuro, corrigir as injustiças e ouvir, de uma vez por todas e sem reservas, aquilo que os enfermeiros têm para dizer.

Lisboa, 25 de maio de 2020