AFINAL O DIABO VESTE DE CORONOVIRÚS

Afinal o diabo veste de coronovirús
em 2020-06-02 Ano: 2020
Crónicas de uma pandemia_VF.png
Autor(es)

António Manuel Ribeiro Nunes

Economista

Administrador Hospitalar

(Sócio da APDH)


Continuamos sem saber que vírus é este, sabemos que se camufla muito bem, sofre rápidas e múltiplas mutações, é mais contagioso que outros vírus de espécie semelhante, genericamente é menos letal, mas ainda assim mais imprevisível e perigoso, replica-se rapidamente, atacando as células de indivíduos que têm determinadas patologias.

Temos vivido este período num autêntico pânico e a comunicação social não tem ajudado muito, é por vezes mais alarmista que pedagógica, com imagens de serviços de saúde em ruptura, filas de camiões no transporte dos corpos, valas comuns para enterrar mortos, mensagens lancinantes de profissionais da saúde, cidades vazias com o medo a espreitar nos becos e esquinas, enfim um autêntico filme de terror.

Considero que temos navegado muito ao sabor do improviso. Numa 1ª fase não valorizamos o problema quando este já andava por aí. Depois por desconhecimento e medo veio em força a quarentena e o confinamento e conseguimos o achatamento pretendido, mas a seguir tivemos que desconfinar pois a economia não aguentava estar tanto tempo fechada.

Ainda nesta 1ª fase as máscaras foram desaconselhadas, agora são praticamente obrigatórias, e até se tornaram oportunidade de negócio. Também não valorizamos a desinfeção dos espaços, agora é fundamental fazê-lo. ….

Caminhamos por isso numa vereda sem margens, sem saber o que fazer e o que vai acontecer. Procuramos uma solução preventiva e também curativa, mas a ciência carece de mais tempo e de mais dados. Vamos andar todos a tatear um futuro que será imprevisível e diferente.

Apesar de vivermos este drama há somente 2 meses, as cicatrizes são já visíveis e profundas, vamos tentar analisá-las do ponto de vista económico e na perspetiva do nosso sistema de saúde.

Todos os economistas são de opinião que o país parece hoje mais bem preparado para enfrentar a crise, e se não fosse esta, o crescimento e o desemprego que já apresentavam valores inimagináveis há uns tempos atrás, seriam o suporte para o sucesso económico do país. 

Mas, há também uma corrente de opinião, que sustenta que, terá havido neste período que antecedeu o COVID 19, uma excessiva preocupação em controlar a despesa corrente com forte repercussão no investimento público, daí que a não aplicação da Lei do Enquadramento Orçamental, tornaram mais frágil o nosso fraco tecido económico.

O país na frente externa, apresentava uma dívida líquida de 85.1%, relativamente ao PIB, pior só o CHIPRE e a GRÉCIA, somos simultaneamente dos países mais dependentes do Turismo, e este é um dos sectores mais afetados por esta crise, sendo que a nossa economia, (70%) assenta em microempresas e gravita muito em redor desde sector. Estas empresas foram as primeiras a encerrar, ou entraram em lay-off. Mas na frente interna também apresentamos muitas fragilidades (elas são estruturais), temos uma dívida pública de 117.7%, relativamente ao PIB, piores só a Itália e a Grécia. A agravar este cenário temos uma população das mais envelhecidas e com menores taxas de produtividade. Infelizmente é este o nosso verdadeiro ponto de partida para uma das maiores crises dos últimos 100 anos.

 Mas ainda é cedo para avaliarmos a dimensão da tragédia. No final do corrente ano já conhecemos alguns dos seus efeitos; como a taxa de desemprego, o saldo orçamental, o montante da dívida pública, as taxas de juro e de inflação, a carga fiscal conseguida, o valor do PIB, etc, etc, etc. 

Há já uma certeza, estamos perante um empobrecimento generalizado e é inevitável que vamos assistir a uma degradação dos indicadores de saúde, aliás as crises económicas sempre estiveram associadas a dificuldades maiores dos sistemas de saúde.

Deixo aqui um desafio, fazermos uma avaliação ao desempenho dos diversos sistemas de saúde dos países da Europa no combate a esta pandemia e acreditem que vamos chegar a conclusões interessantes. 

Quais as repercussões no sector da saúde? Como foi o nosso desempenho? O que vem a seguir?  

Tal como o tecido económico, também este sector apresenta muitas fragilidades;

Dividas permanentes e excessivas,

Taxas de ocupação muito baixas na utilização dos recursos disponíveis.

Listas de espera enormes nalguns serviços hospitalares.

Equipamentos e estruturas envelhecidas por falta de investimentos.

Faltam profissionais nalgumas áreas específicas, como médicos de família, elevado número de funcionários experientes em limite de idade, altas taxas de absentismo,…

Mas este sector teve um reforço orçamental de 800 milhões de euros no corrente ano e a perspetiva de novos investimentos para os próximos, parecia que iria finalmente ter alguma capacidade de recuperação.

Contudo, da análise das contas do 1º trimestre, e ainda praticamente sem incidência dos efeitos COVID 19, estas já revelam crescimentos inexplicáveis; a despesa global cresce +305.1 milhões de euros (+12.6%), as despesas com pessoal + 7.2%. Ainda só está reflectida nesta execução orçamental 73.6 milhões de euros (3%), decorrentes da compra de material de prevenção e tratamento da doença COVID 19.

A atividade assistencial neste período reflete decréscimos significativos, 5.7% nas consultas, 5.3% nas cirurgias e 11.5% nas urgências! 

A análise do 2º trimestre vai ser ainda mais catastrófica pois esta pandemia tem uma enorme incidência neste período e quase obrigou todo o SNS a concentrar-se no seu combate. Conseguiram-se baixas taxas de mortalidade, mas estas foram, mais fruto do confinamento e do achatamento da curva e podemos dizer que fomos muito eficazes, mas com custos de oportunidade elevados no combate à pandemia.

Os próximos tempos são de grandes incertezas e desafios. Relativamente ao financiamento do SNS, parece já haver um consenso nacional, o de se reforçarem verbas para fortalecer a cobertura do SNS. São boas notícias se assim for (isto se houver mais recursos financeiros disponíveis à custa do aumento da dívida pública) mas considero que ou somos mais eficientes (e este principio da eficiência é profundamente abrangente e incide particularmente na gestão dos recursos humanos e na organização e articulação dos diversos serviços) ou continuamos a ter as mesmas dificuldades que tivemos nos últimos 20 anos. Não tenho dúvidas que colocando mais dinheiro no sistema, reforçando a hospitalização domiciliária incluindo a recuperação dos covids e tratando outras patologias em casa, introduzindo a revolução digital agora acelerada, possibilitando a tele saúde e a teleconsulta, e até criando unidades específica para responder a estas pandemias, podem ser tudo boas soluções intermédias, mas não resolvem os problemas do sector.

Os efeitos desta pandemia além dos orçamentais vão agravar as já longas listas de espera com tempos médios de resposta que põem em risco a saúde de muitos cidadãos, e vão acentuar-se as desigualdades sociais. 

As poupanças das famílias, já em queda desde 2013, vão ficar mais limitadas, colocando também por isso uma maior pressão no SNS.

O sector privado vai reforçar a sua complementaridade na resolução destas listas de espera e vai continuar a ser fortemente concorrencial.    

Lisboa, 14 maio de 2020