O nosso segredo: o Trace COVID-19

Autor(es)
Luís Goes Pinheiro
Presidente do Conselho de Administração da Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, EPE
- Estou sim?! – disse o rapaz, premindo o botão do telefone.
- Olá, Duarte, sou eu, o … – ouviu-se do outro lado.
- Ah! – exclamou, interrompendo. – Mãe! Mãe! É o Dr. Trigo para ti. Vou deixar o telefone aqui à porta. OK?
Joana entreabriu a porta do quarto, pegou no telefone, fechou a porta atrás de si e atendeu o médico que lhe telefonara, diariamente, desde o dia em que, por ter febre, contactara o SNS24.
– Estou?! Oh! Dr., está bom? Eu?... – Perguntou. – Estou bem. Sempre vou fazer o teste amanhã?... Ótimo. – respondeu, perante a anuência do médico. – Muito obrigada, Dr., já não era sem tempo. Até amanhã. – disse, desligando, enquanto depositava um olhar esperançoso sobre a porta do quarto que se tornara de cela durante a quarentena forçada.
Trata-se de um diálogo imaginado, mas ilustra, certamente, muitos dos telefonemas reais que têm acontecido. Desde o dia 26 de março, data em que Portugal mergulhou na fase de mitigação da pandemia da Covid-19, que os médicos de medicina geral e familiar vigiam os casos suspeitos de Covid-19, contactando-os regularmente.
Este modelo, uma singularidade portuguesa, tem sido apontado por muitos, especialmente fora do nosso país, como um dos grandes responsáveis pelos bons resultados alcançados até agora no combate à pandemia. O segredo da sua eficácia está na simbiose entre a imposição, por via regulamentar, deste paradigma e o registo e monitorização do seu cumprimento no sistema informático que lhe serve de suporte: o Trace COVID-19.
O nome da plataforma transporta-nos para a sua génese. Inicialmente, visava ser um sistema de registo da atividade das equipas de saúde pública, designadamente de identificação de cadeias epidemiológicas (tracing), mas rapidamente se transformou no primeiro sistema de gestão da pandemia, com os médicos de família a tornarem-se os seus principais atores.
São já quase meio milhão os utentes que, por uma razão ou por outra, foram registados no Trace COVID-19. Entre estes, encontram-se aqueles que, por serem casos suspeitos ou confirmados de Covid-19 com sintomas pouco graves e por não terem comorbilidades, foram enviados para os seus domicílios pelos enfermeiros do SNS24 ou pelos médicos dos hospitais ou das ADC-COMUNIDADE (as unidades que, nos centros de saúde, atendem, exclusivamente, utentes suspeitos de estarem infetados com o vírus SARS-CoV-2).
Estes utentes são depois acompanhados no seu domicílio, sendo a informação recolhida e inserida no Trace COVID-19 pelo seu médico de família ou pelo médico de medicina geral e familiar que o substituir, de modo a que, dentro de cada Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS), seja possível acompanhar o utente e monitorizar a execução das tarefas.
É, assim, possível apurar, muito rapidamente, se o doente tem algum agravamento de sintomas, carecendo de ser observado presencialmente por um médico ou até de internamento hospitalar, ou se, estando assintomático, já esteve tempo suficiente em isolamento, devendo realizar novo teste à Covid-19 para, eventualmente, ser dado como curado.
Este modelo de acompanhamento tem, evidentemente, vários benefícios adicionais, pelo menos tão importantes quanto os atrás referidos: em primeiro lugar, a tranquilização dos utentes, que, sendo casos suspeitos ou confirmados de Covid-19, estão especialmente ansiosos; em segundo lugar, a racionalização do recurso ao Serviço Nacional de Saúde, por via da redução das deslocações desnecessárias aos hospitais, em especial às urgências, ou aos centros de saúde, bem como do número de chamadas para o SNS24; e, finalmente, a diminuição do contágio da doença, muito especialmente em virtude do incremento do respeito pelo isolamento obrigatório, pois os utentes, estando em vigilância clínica ou epidemiológica, sabem que serão contactados a qualquer momento por um médico e que este, facilmente, perceberá se não se encontrarem no domicílio.
Embora tenha deixado de ser a sua vocação principal, este sistema informático permite, também, registar e monitorizar as tarefas das equipas de saúde pública, designadamente a identificação dos contactos epidemiológicos, que, como bem sabemos, são tão importantes para identificar e interromper as cadeias de transmissão dos novos surtos da epidemia.
O novo modelo e o sistema Trace COVID-19 já permitiram registar mais de um milhão de vigilâncias. São milhares as horas dadas pelos médicos a estas tarefas. São milhares os utentes que, tal como a Joana, beneficiaram deste serviço. Foi um paradigma que nasceu com a Covid-19. Não sabemos como será o futuro. O pós-pandemia. Ninguém sabe. Voltar atrás não é, contudo, uma possibilidade. Resta-nos, então, garantir que o futuro passará pelo que de bom tem sido feito.
Lisboa, 1 de junho de 2020