Ainda a Saúde Mental
Autor(es)
José Carlos Santos
Enfermeiro Especialista em Enfermagem de Saúde Mental
Professor Coordenador
Escola Superior de Enfermagem de Coimbra
Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Carlos Drumond de Andrade, 1940
Terá sido a 17 de novembro de 2019 que o primeiro caso de infeção por covid foi conhecido na China. A 24 de janeiro de 2020 terá sido o primeiro na europa e em Portugal foi anunciado o primeiro caso a 2 de março. Todavia, ninguém, em bom rigor, poderia imaginar as consequências desta infeção ao nível individual, familiar, laboral e social em todo o mundo. De algo longínquo fomos sentindo a sua proximidade cada vez mais até ser o elemento “organizador” da nossa vida individual e coletiva. Ainda dificilmente alguém poderá projetar as suas verdadeiras implicações no futuro.
Menos arriscado será dizer que estamos a viver uma primeira fase de desconfinamento com a atenção ainda centrada em modelos epidemiológicos e intervenções para lidar com o vírus em que os atores são, sobretudo, profissionais de saúde e o Serviço Nacional de Saúde a que todos devemos estar gratos e assumir a responsabilidade de, independentemente do nosso papel ou estatuto, lutar pelo seu reforço e afirmação.
Alguma evidência entretanto produzida e experiências de crises de saúde pública anteriores, apontam a saúde mental como o problema emergente após a fase que ainda vivenciamos. Saliente-se que, entre nós, as plataformas de apoio multiplicaram-se e por via disso, poderemos ter evitado um aumento significativo de situações de maior desequilíbrio ou a agudização de outras. Apesar de todos termos sentido a diminuição do nosso bem-estar, apenas uma minoria irá sofrer de doença mental, embora muitos possam sentir sofrimento mental.
Para os que realmente necessitam de cuidados de saúde, prestados por profissionais de saúde mental, a acessibilidade será a palavra chave. As plataformas digitais podem funcionar como complementaridade, otimizando recursos e acompanhamento, mas dificilmente substituirão a necessidade do contacto presencial, imprescindível para uma avaliação global, a interpretação do não dito, o toque, para a criação de uma relação de confiança entre a pessoa e o profissional de saúde mental. Os grupos mais vulneráveis são pessoas anteriormente diagnosticadas com doença mental, idosos, profissionais de saúde, vitimas de violência doméstica, minorias (sem abrigo, refugiados …) e pessoas com perda de rendimentos (totais ou parciais) onde os novos desempregados se destacam. Sabemos que as respostas exclusivas da área da saúde são escassas para lidar com as determinantes sociais em saúde mental e que, a preferência por politicas integradas de solidariedade social, emprego, educação, entre outras, são fundamentais para prevenir a doença e promover a saúde mental.
Tendo esta ideia como estruturante, à luz da evidência produzida, parece ser mais útil olhar para o presente, atuando sobre o que se conhece, ao invés de criar cenários catastróficos ou idílicos que neste momento serão ficção, para que a esperança no futuro não seja um exercício de fé, mas algo fundamentado em medidas efetivas. Sabemos por experiências anteriores da efetividade de políticas sociais, sabemos pela experiência atual que o Serviço Nacional de Saúde é fundamental e insubstituível na prestação de cuidados de saúde às populações.
Talvez seja importante, do ponto de vista da saúde mental, olhar aqueles que, podendo “desconfinar fisicamente” não se libertam dum “confinamento interno”, que os inibe na interação, e cuja rede de suporte social pobre os limita nas permutas sócio afetivas. Aqui encontram-se muitas pessoas em sofrimento mental cujo confinamento deixou de ser identitário, enquanto procedimento que a todos colhia, para ser algo vivenciado de forma individual, aumentando a dessintonia com o mundo exterior, avolumando assim o sofrimento interno, por vezes considerado “intolerável, inadiável e interminável”.
Possivelmente, muitas destas pessoas nunca terão contacto com um profissional de saúde mental, por baixa literacia em saúde mental, por estigma ou por falta de acessibilidade. Infelizmente algumas delas terão repercussões graves por isso. Possivelmente algumas ultrapassarão a crise situacional se próximo delas alguém se interessar, demonstrando compreensão e apoio na resolução dos seus problemas, atribuindo-lhe um sentido, capacitando-as ou encaminhando-as para uma ajuda especializada. Este parece ser o desafio que se coloca a todos, à medida que a pandemia se afasta mais dos serviços de doenças infeciosas, cuidados intensivos, do hospital e dos profissionais de saúde e se centra na comunidade, em cada um de nós, profissionais ou não, numa visão de maior proximidade. Urge, pois, a necessidade de (re)construir a Comunidade (Gemeinschaft) como entendida por George Simmel, onde a pessoa constrói a sua identidade a partir de um processo de interação onde o sentimento do outro é crucial. O conceito de rede e suporte social, a interdependência que nos carateriza, a aliança intergeracional que necessitamos e a solidariedade que nos distingue parecem ser ferramentas cruciais para o bem-estar e a prevenção da doença mental, sobretudo na fase da crise que vivenciamos.
Coimbra, 15 de junho 2020