HÁ SEMPRE UM LADO POSITIVO EM QUALQUER DESGRAÇA

Há sempre um lado positivo em qualquer desgraça
em 2020-06-26 Ano: 2020
Crónicas de uma pandemia_VF.png
Autor(es)

Joaquim Cunha

Diretor Exectivo

Health Cluster Portugal


Sim, foi uma desgraça, sem qualquer margem para dúvidas, o que nos aconteceu neste primeiro semestre de 2020. A todos: aos do norte e aos do sul, do oriente ao ocidente, do primeiro ao terceiro mundo. 

Para apurar, medir e avaliar fica a dimensão e sobretudo os impactos da mesma. Ainda estamos muito em cima dos acontecimentos construindo todos os dias a esperança de que as coisas estão a passar e que o verbo vai começar a poder ser conjugado no passado.

Os números já conhecidos são fortes. Os nossos mais velhos foram o elo mais fraco e as vítimas imediatas. Estamos a atravessar uma das maiores recessões de que há história desconhecendo quando e como dela vamos sair.

Num registo mais pessoal, e repondo o calendário ali por volta do meio do passado mês de março, caracterizaria o começo da crise em três fases: 

i) o mundo caiu-me/caiu-nos em cima;

dois ou três dias de surpresa e de confronto com uma realidade totalmente nova e nunca antes vista onde, apesar de tudo, a informação circulou e onde as pessoas e as suas organizações se procuraram encontrar e posicionar;

ii) o que posso/podemos fazer;

uma, talvez duas, semanas em que, genericamente, e orgulho-me muito disso, a posição dominante dos meus concidadãos foi a de se questionarem individualmente e/ou em grupo – como posso ser útil? Como posso ajudar?

iii) vamos arregaçar as mangas, vamos a isto;

onde quase todos nos encontrávamos ali pelos finais de março.

Olhando agora para trás e para estes últimos três meses, do privilegiado miradouro que é o Health Cluster Portugal (HCP), foi possível ver este extraordinário e dinâmico setor português da Saúde a superar-se:

- passando imediatamente do arregaçar das mangas para a ação;

- ativando, em tempo record, planos de contingência, uns mais elaborados e formais, outros menos e outros que ainda foi necessário inventar;

- abrindo-se, ainda mais, à colaboração e à cooperação entre empresas e destas com instituições de ciência e unidades prestadoras de cuidados.

Com efeito, e começando pela chamada linha da frente, foi com uma ponta de orgulho que assisti às manobras de movimentação e posicionamento das múltiplas componentes do sistema nacional de saúde com rápidos e imediatos resultados, onde merece uma palavra muito especial de reconhecimento o espirito de entrega e de missão dos seus profissionais.

Claro que nem tudo esteve bem. Claro que hoje, com o conhecimento entretanto adquirido, algumas opções seriam provavelmente outras. Mas o que interessa relevar é que a resposta existiu em tempo útil e foi eficaz no que na altura era o mais importante – salvar o maior número de vidas possível.

Foi ainda evidente que sempre que conseguimos construir respostas integradas e abrangentes obtemos melhores resultados e aqui há lições a reter para o futuro.

Num outro patamar pudemos encontrar a ciência, as instituições de ciência e os cientistas. Igualmente de prontidão e mangas arregaçadas procuraram organizar-se, em redes colaborativas mais ou menos formais, para criar massa crítica e obter melhores e mais efetivas respostas. Uns foram mais eficazes na comunicação e no marketing e monopolizaram os holofotes e a atenção de uma comunicação social às vezes míope e parola. Outros privilegiaram mais a postura de formiguinha e puseram-se ao caminho e ao trabalho. 

Todos estiverem globalmente bem e, estou certo, destes tempos vão sair ideias e respostas muito interessantes de que em breve ouviremos falar.

Um pouco por todo o mundo e também no nosso país, a ciência e os cientistas deram corpo à base de conhecimento em que os políticos estruturaram as suas decisões. Cá para nós, foi mais show off e escudo protetor para desculpar eventuais consequências mais desastrosas e impopulares que um quadro de grande desconhecimento podia gerar do que verdadeira crença na razão e no saber. Em todo o caso foi um bom precedente de que haveremos de saber tirar partido no futuro.

Mais, como todos os dias ouvimos, só sairemos completamente deste estado de coisas quando surgir uma vacina ou um tratamento eficaz para a Covid19 e isso está nas mãos das muitas e incansáveis equipas de cientistas que, numa luta contra o tempo, estão a trabalhar no assunto. God bless them!

Do lado das empresas a reação foi igualmente muito positiva e consequente. As empresas farmacêuticas e as empresas do dispositivo médico não só não pararam como reforçaram as suas capacidades de produção que, de uma forma geral, orientaram para a supressão das necessidades do mercado interno. 

Apesar disso, é de assinalar que face a igual período do ano anterior, as exportações portuguesas em Saúde cresceram 8,8% no primeiro trimestre do ano em curso.

Acresce, no entanto, que este crescimento não só foi feito num quadro instável e mesmo recessivo – sobretudo no último mês do trimestre -, como, e isto parece-me relevante, em contraciclo com a globalidade das exportações nacionais de bens que, em igual período, observaram um decréscimo de 3,3%.

Uma nota também, de simpatia e de carinho, para as muitas, e foram mesmo muitas, empresas de outros sectores que procuraram dar um contributo, na maioria desinteressado, para a escassez de equipamentos de protecção individual ou de soluções desinfetantes. 

Uma referência final ao exército silencioso e invisível dos trabalhadores das muitas empresas que não deixaram que o mundo parasse e que asseguraram não só a nossa sobrevivência como a manutenção, a níveis muito bons, dos nossos padrões de vida. Estou, naturalmente, a referir-me às telecomunicações, aos transportes, aos media, ou aos serviços básicos, mas também a toda a cadeia alimentar, em particular à mercearia de bairro, que nunca fechou. 

Para a frente, para o futuro, que espero possamos começar a acelerar a sua retoma, fica-nos a pesada fatura dos que a pandemia levou e continua a levar, uma recessão sem precedentes cuja dimensão ainda desconhecemos e, à data de hoje, a não completa certeza de que vamos conseguir vencer o vírus.

Ficam-nos, também, e este é o lado positivo desta desgraça que quero sublinhar, um conjunto de lições e algumas oportunidades que não devemos desperdiçar:

o impulso e o incentivo à smart health e à cultura web, em particular à disseminação e generalização da teleconsulta e da vídeo conferência.

Julgo que se avançou mais nas três ou quatro primeiras semanas do confinamento do que nos últimos dez anos. A necessidade, neste caso imperiosa, não precisou de aguçar o engenho porque de algum modo já estava aguçado – tecnologia madura e disponível – mas impôs a sua generalização que a utilidade e a comodidade para todos vão agora tratar de garantir que esta diferença é para ficar.

As vantagens em assumirmos, à escala nacional e europeia, a Saúde como prioridade estratégica e, consequentemente, como importante motor da recuperação económica.

Nos primeiros tempos da pandemia vieram à tona fragilidades estruturais neste domínio na maioria dos países europeus, caricaturalmente ilustradas por disputas e mesmo “desvios” de ventiladores ou de caixas de máscaras provenientes da China. Parece que no Plano de Recuperação em que a Comissão Europeia está a trabalhar a reindustrialização da cadeia de valor da saúde será uma prioridade. 

A concluir, e colocando o foco no nosso país, estes tempos deram legitimidade e reforçaram a evidência do potencial e da oportunidade da Saúde assumir um papel central na estratégia de recuperação económica. O HCP tem vindo a trabalhar nesse sentido (muito antes da Covid19) envolvendo os principais atores do setor desde a ciência à prestação de cuidados passando pela indústria e pela prestação de serviços. Foi nesse sentido que em março do ano passado assinámos com o Governo Português, através do Ministro da Economia, o Pacto para a Competitividade e Internacionalização da Saúde.

Mais do que nunca, é preciso agir com determinação na Industrialização, na Inovação, nos Dados e na Digitalização da Saúde. 

Deocriste (Viana do Castelo), 20 de junho de 2020*


*Concluído em Deocriste (Viana do Castelo), em 20 de junho de 2020, com base em notas escritas dez dias antes nos céus de uma Europa estranha - com aeroportos vazios e dolorosamente silenciosos - a sair muito timidamente de um confinamento global e prolongado, num voo para Viena onde fui buscar o primeiro abraço pós quarentena da minha neta Helena.