E se a Saúde Publica não Existisse?
Autor(es)
Miguel Lemos
Diretor Executivo do ACES Arco Ribeirinho
Todos os dias a Sra. Joana C. (nome fictício) saía por volta
das 5.30h da manhã para ir apanhar a camioneta que a levava até ao sitio onde
trabalhava, nas limpezas de um grande escritório na margem norte do Tejo.
Apesar de ser março, a temperatura da manhã ainda fazia
lembrar o peso frio das geadas matinais que eram habituais nos dias de inverno.
Por isso, aquela brisa matinal misturada com algum vento, obrigavam a um
agasalho extra que era indispensável para ela sentir algum conforto durante o
trajeto, até ao seu local de trabalho.
Costumava apanhar um autocarro cheio de pessoas conhecidas
do bairro onde morava que, dada a hora, fazia pressupor que seriam pessoas que
iriam trabalhar em áreas ligadas aos serviços de limpeza ou à construção civil,
por serem atividades cujas tarefas têm que começar e terminar cedo, antes de
outras iniciarem, como é o caso das limpezas, ou porque têm obrigatoriamente
por via de alguma “empreitada laboral” iniciarem entre as 7.30h e as 8.00h da
manhã, como é o caso das obras.
Nesse mês de março, tinha sido anunciado o primeiro caso de
uma pessoa infetada com esse “bicho” desconhecido cujo o nome de batismo dado
pelos cientistas se designava de SARS-CoV-2, mais conhecido por Covid-19.
Estávamos no inicio daquele que viria a ser um dos maiores
eventos epidemiológicos da humanidade que, conseguiu da forma mais rápida e
conhecida até hoje, paralisar socialmente o mundo inteiro sem que, houvesse um
grupo secreto de estrategas mundiais ou alguma rede subversiva de malfeitores
que assim o tivessem premeditado na clandestinidade do conhecimento público.
Assim queremos continuar a acreditar, como é natural, face ao que nos é dado a
conhecer pela comunicação social.
Sem percebermos muito bem, foram dizendo que pelo ar, por
terra e até pelo mar, esse “bicho” virulento, circulava sem pedir licença e
que, a única coisa que efetivamente poderia surtir efeito seria deixarmos de
estar uns com os outros! Não lembrava a ninguém!
Houve um dia em que a Sra. Joana C. acordou muito quente e
com uma tosse persistente que a acompanhava há quase uma semana e que ela, não
tinha dado importância. Sentindo-se muito maldisposta resolveu ir ao centro de
saúde, tendo conseguido ser vista pelo seu médico de família que a aconselhou a
ir fazer o teste a esse novo vírus que por aí circulava, não fosse aquela
síndrome gripal ser outra coisa.
Quando o resultado chegou, foi confirmado o diagnostico
positivo de infeção por SARS-CoV-2. Sabendo da grande capacidade de transmissão
e infeção deste vírus e, estando sintomática, o seu médico recomendou que
ficasse em casa isolada com medicação para controlar a febre e a tosse e que,
em caso de agravamento desses sintomas se dirigisse rapidamente para o hospital
da sua zona de residência.
No meio deste turbilhão de informações e recomendações
clínicas, começaram a surgir um conjunto de dúvidas relacionadas com uma
potencial rede de contágio e propagação na qual, a Sra. Joana C. tinha sido a
principal agente de transmissão: O que fazer com os familiares que viviam com
ela? E com os amigos com quem tinha estado? E com os vizinhos com quem
partilhava a escada exígua do prédio onde habitava? E com as pessoas do bairro
que com ela tinham viajado de camioneta durante os últimos dias? E com as
colegas do trabalho?
Afinal, quem é que iria tratar de gerir e acompanhar toda
esta rede de contatos epidemiológicos que traduziam uma potencial e complexa
cadeia de transmissão do Covid-19? Quem é que iria determinar medidas e definir
orientações de saúde junto da comunidade e dos seus habitantes?
Foi precisamente neste ponto de viragem em que, esta doença
com larga expressão epidémica e infeciosa na comunidade, permitiu que
naturalmente reemergisse de forma clara a importância da ação interventiva da
saúde pública e dos seus profissionais na gestão dos processos epidemiológicos
relacionados com esta pandemia que continua por conhecer na sua totalidade.
Mais, podemos perceber que pela ausência de uma efetiva
comunicação social, a maior parte de nós continua sem entender verdadeiramente
a importância do profissional de saúde publica. Diariamente somos invadidos
pela informação dos media que centram a mensagem noticiosa na doença e em quem
trata dela, esquecendo-se que antes da doença, existem um conjunto de atores
cuja função é manter os níveis de saúde de uma comunidade, evitando a todo o
custo, que a doença ganhe terreno, sendo que essa, é seguramente a grande
missão dos Cuidados de Saúde Primários nos quais a Saúde Publica se assume como
a grande “trave mestra”.
Se considerarmos o impacto ao nível da morbilidade que o
Covid-19 tem, sabemos que estatisticamente cerca de 80% dos infetados não têm
sintomas, 15% serão internados com sintomas agudos e somente 5% necessitarão de
internamento em unidades de cuidados intensivos.
A realidade diz-nos, pois, que se não existirem orientações,
medidas e ações concretas ao nível da gestão epidemiológica sobre os 80% atrás
referidos e sobre toda a rede de indivíduos que que potencialmente possam ter
estado em contacto com essa percentagem de pessoas infetadas, a propagação do
vírus será exponencial dentro da população.
Para além desta ação
imediata da Saúde Publica, foram também os mesmos que, nos vários órgãos que
supervisionam e que têm a responsabilidade da gestão normativa e operacional da
saúde no país que, forneceram a informação para que fossem tomadas as medidas
politicas, julgadas como mais adequadas para a contenção desta pandemia, à luz
do conhecimento que se ia adquirindo, de um vírus que ainda tem muito para
conhecer.
Foram os nossos profissionais de saúde publica que, apesar
de não estarem na prestação direta de cuidados aos doentes infetados, estiveram
e continuam a estar presentes na gestão direta da epidemiologia desta pandemia
que passa por manter uma eficiente identificação de todos os casos positivos,
de garantir toda a vigilância sobre os utentes infetados e assintomáticos que
tenham que estar sob vigilância, seja ativa, passiva ou sobreativa, mantendo em
simultâneo, um reporte diário de todas estas situações. Estes profissionais,
estão ainda envolvidos na gestão territorial de todos os processos de testagem
na comunidade a Instituições (publicas, privadas), aos seus profissionais e
utentes e a toda a população em geral.
Percebemos agora que esta pandemia, veio provar que os
sistemas de saúde não vivem somente da tecnologia médica e terapêutica
existente nos cuidados de saúde secundários (hospitalares), mas também da
existência de outras forças e ações terapêuticas e porque não, também de outras
tecnologias médicas, existentes nos cuidados de saúde primários (primeiros!),
onde a saúde publica e os seus profissionais são parte indissociável!
Apoiar a saúde publica, é apoiar os cuidados de saúde
primários! É de uma vez por todas, desenhar e implementar opções equilibradas
de financiamento, depositando investimento em prevenção da doença e em promoção
da saúde e nos profissionais e estruturas que as promovem, de forma a garantir
a existência de uma cultura de saúde onde a doença, seja sempre um
acontecimento efémero e transitório e não o epicentro do nosso Sistema de
Saúde!
No final, importa informar que a Sra. Joana C. recuperou da sua infeção, após ter testado duas vezes negativo. Informou-nos que se sentia muito grata pelo apoio e que, nunca tinha pensado falar tantas vezes com médicos e enfermeiros de saúde pública, assim como, com o seu médico de família que sempre a acompanhou até ao Fim!
Carnaxide, 20 de junho de 2020