E SE A SAÚDE PUBLICA NÃO EXISTISSE?

E se a Saúde Publica não Existisse?
em 2020-06-30 Ano: 2020
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Autor(es)

Miguel Lemos

Diretor Executivo do ACES Arco Ribeirinho

Todos os dias a Sra. Joana C. (nome fictício) saía por volta das 5.30h da manhã para ir apanhar a camioneta que a levava até ao sitio onde trabalhava, nas limpezas de um grande escritório na margem norte do Tejo.

Apesar de ser março, a temperatura da manhã ainda fazia lembrar o peso frio das geadas matinais que eram habituais nos dias de inverno. Por isso, aquela brisa matinal misturada com algum vento, obrigavam a um agasalho extra que era indispensável para ela sentir algum conforto durante o trajeto, até ao seu local de trabalho.

Costumava apanhar um autocarro cheio de pessoas conhecidas do bairro onde morava que, dada a hora, fazia pressupor que seriam pessoas que iriam trabalhar em áreas ligadas aos serviços de limpeza ou à construção civil, por serem atividades cujas tarefas têm que começar e terminar cedo, antes de outras iniciarem, como é o caso das limpezas, ou porque têm obrigatoriamente por via de alguma “empreitada laboral” iniciarem entre as 7.30h e as 8.00h da manhã, como é o caso das obras.

Nesse mês de março, tinha sido anunciado o primeiro caso de uma pessoa infetada com esse “bicho” desconhecido cujo o nome de batismo dado pelos cientistas se designava de SARS-CoV-2, mais conhecido por Covid-19.

Estávamos no inicio daquele que viria a ser um dos maiores eventos epidemiológicos da humanidade que, conseguiu da forma mais rápida e conhecida até hoje, paralisar socialmente o mundo inteiro sem que, houvesse um grupo secreto de estrategas mundiais ou alguma rede subversiva de malfeitores que assim o tivessem premeditado na clandestinidade do conhecimento público. Assim queremos continuar a acreditar, como é natural, face ao que nos é dado a conhecer pela comunicação social.

Sem percebermos muito bem, foram dizendo que pelo ar, por terra e até pelo mar, esse “bicho” virulento, circulava sem pedir licença e que, a única coisa que efetivamente poderia surtir efeito seria deixarmos de estar uns com os outros! Não lembrava a ninguém!

Houve um dia em que a Sra. Joana C. acordou muito quente e com uma tosse persistente que a acompanhava há quase uma semana e que ela, não tinha dado importância. Sentindo-se muito maldisposta resolveu ir ao centro de saúde, tendo conseguido ser vista pelo seu médico de família que a aconselhou a ir fazer o teste a esse novo vírus que por aí circulava, não fosse aquela síndrome gripal ser outra coisa.

Quando o resultado chegou, foi confirmado o diagnostico positivo de infeção por SARS-CoV-2. Sabendo da grande capacidade de transmissão e infeção deste vírus e, estando sintomática, o seu médico recomendou que ficasse em casa isolada com medicação para controlar a febre e a tosse e que, em caso de agravamento desses sintomas se dirigisse rapidamente para o hospital da sua zona de residência.

No meio deste turbilhão de informações e recomendações clínicas, começaram a surgir um conjunto de dúvidas relacionadas com uma potencial rede de contágio e propagação na qual, a Sra. Joana C. tinha sido a principal agente de transmissão: O que fazer com os familiares que viviam com ela? E com os amigos com quem tinha estado? E com os vizinhos com quem partilhava a escada exígua do prédio onde habitava? E com as pessoas do bairro que com ela tinham viajado de camioneta durante os últimos dias? E com as colegas do trabalho?

Afinal, quem é que iria tratar de gerir e acompanhar toda esta rede de contatos epidemiológicos que traduziam uma potencial e complexa cadeia de transmissão do Covid-19? Quem é que iria determinar medidas e definir orientações de saúde junto da comunidade e dos seus habitantes?

Foi precisamente neste ponto de viragem em que, esta doença com larga expressão epidémica e infeciosa na comunidade, permitiu que naturalmente reemergisse de forma clara a importância da ação interventiva da saúde pública e dos seus profissionais na gestão dos processos epidemiológicos relacionados com esta pandemia que continua por conhecer na sua totalidade.

Mais, podemos perceber que pela ausência de uma efetiva comunicação social, a maior parte de nós continua sem entender verdadeiramente a importância do profissional de saúde publica. Diariamente somos invadidos pela informação dos media que centram a mensagem noticiosa na doença e em quem trata dela, esquecendo-se que antes da doença, existem um conjunto de atores cuja função é manter os níveis de saúde de uma comunidade, evitando a todo o custo, que a doença ganhe terreno, sendo que essa, é seguramente a grande missão dos Cuidados de Saúde Primários nos quais a Saúde Publica se assume como a grande “trave mestra”.

Se considerarmos o impacto ao nível da morbilidade que o Covid-19 tem, sabemos que estatisticamente cerca de 80% dos infetados não têm sintomas, 15% serão internados com sintomas agudos e somente 5% necessitarão de internamento em unidades de cuidados intensivos.

A realidade diz-nos, pois, que se não existirem orientações, medidas e ações concretas ao nível da gestão epidemiológica sobre os 80% atrás referidos e sobre toda a rede de indivíduos que que potencialmente possam ter estado em contacto com essa percentagem de pessoas infetadas, a propagação do vírus será exponencial dentro da população.

Para além desta ação imediata da Saúde Publica, foram também os mesmos que, nos vários órgãos que supervisionam e que têm a responsabilidade da gestão normativa e operacional da saúde no país que, forneceram a informação para que fossem tomadas as medidas politicas, julgadas como mais adequadas para a contenção desta pandemia, à luz do conhecimento que se ia adquirindo, de um vírus que ainda tem muito para conhecer.

Foram os nossos profissionais de saúde publica que, apesar de não estarem na prestação direta de cuidados aos doentes infetados, estiveram e continuam a estar presentes na gestão direta da epidemiologia desta pandemia que passa por manter uma eficiente identificação de todos os casos positivos, de garantir toda a vigilância sobre os utentes infetados e assintomáticos que tenham que estar sob vigilância, seja ativa, passiva ou sobreativa, mantendo em simultâneo, um reporte diário de todas estas situações. Estes profissionais, estão ainda envolvidos na gestão territorial de todos os processos de testagem na comunidade a Instituições (publicas, privadas), aos seus profissionais e utentes e a toda a população em geral.

Percebemos agora que esta pandemia, veio provar que os sistemas de saúde não vivem somente da tecnologia médica e terapêutica existente nos cuidados de saúde secundários (hospitalares), mas também da existência de outras forças e ações terapêuticas e porque não, também de outras tecnologias médicas, existentes nos cuidados de saúde primários (primeiros!), onde a saúde publica e os seus profissionais são parte indissociável!

Apoiar a saúde publica, é apoiar os cuidados de saúde primários! É de uma vez por todas, desenhar e implementar opções equilibradas de financiamento, depositando investimento em prevenção da doença e em promoção da saúde e nos profissionais e estruturas que as promovem, de forma a garantir a existência de uma cultura de saúde onde a doença, seja sempre um acontecimento efémero e transitório e não o epicentro do nosso Sistema de Saúde!

No final, importa informar que a Sra. Joana C. recuperou da sua infeção, após ter testado duas vezes negativo. Informou-nos que se sentia muito grata pelo apoio e que, nunca tinha pensado falar tantas vezes com médicos e enfermeiros de saúde pública, assim como, com o seu médico de família que sempre a acompanhou até ao Fim!

Carnaxide, 20 de junho de 2020