Cuidados Oncológicos em contexto de COVID-19 - A perspetiva do IPO de Coimbra

Autor(es)
Margarida Ornelas
Presidente do Conselho de Administração do IPO de Coimbra
Foi um enorme desafio estruturar e orientar as estratégias
necessárias, no âmbito da prevenção da propagação da COVID-19, no IPO de
Coimbra.
Nos primeiros dias de janeiro estávamos no começo de uma
discussão sobre o alcance e perigosidade do novo coronavírus, com informação
escassa e até um pouco contraditória sobre um vírus do qual pouco se sabia.
Enquanto uns diziam que seria a "pandemia do século", outros
refutavam afirmando que a Europa, com o seu sistema de saúde, teria total
capacidade de resposta aos “danos”, equiparando, até, o vírus a uma “gripe”.
Mas os primeiros relatos de outros países, nomeadamente as vivências concretas
que nos iam chegando através da comunicação social e de hospitais congéneres,
fizeram-nos perceber rapidamente que teríamos de nos preparar para o pior,
esperando o melhor.
Ainda no mês de janeiro, multiplicaram-se as reuniões de
trabalho, nomeadamente com o GCL- PPCIRA e iniciavam-se ações de sensibilização
para os profissionais. O plano de contingência começava a ser desenhado, vindo
a ser publicado em meados de fevereiro e sucessivamente adaptado ao longo do
tempo, de modo a enfrentarmos os vários desafios que a pandemia nos colocaria.
Um dos primeiros problemas a resolver seria o de perceber
como adaptar a estrutura física e os recursos humanos a esta nova realidade.
Num hospital com as caraterísticas do IPO, com doentes
imunodeprimidos, garantir a segurança é uma responsabilidade redobrada, pelo
que se impôs, logo no início de março, restringir o acesso de acompanhantes e
visitas e disseminar cada vez maior nível de informação.
Por essa mesma altura, impunha-se, ainda, o reforço imediato
de stocks de medicamentos, dispositivos médicos e equipamentos de proteção
individual, com os Serviços a trabalhar energicamente neste sentido para a
garantia de todas as condições de segurança. Era, ainda, fundamental redesenhar
os circuitos dos doentes, os fluxogramas de atuação dos profissionais e
reforçar as equipas, designadamente, o GCL-PPCIRA.
A 11 de março a OMS declarou que o surto do novo coronavírus
atingia o nível de pandemia e o IPO de Coimbra transforma-se numa espécie de
"fortaleza anti COVID", como alguns o batizaram.
Como factos iniciais mais marcantes, destacam-se a definição
de uma área de isolamento para casos suspeitos e, a 13 de março, a instalação
dos primeiros postos de atendimento prévio no campus hospitalar. Impunha-se
fazer o rastreio clínico a todos os doentes antes de entrarem nas instalações.
Mais tarde, ainda no mês de março, instalam-se os postos de atendimento dos
colaboradores para a monitorização dos profissionais.
A 18 de março foi declarado o estado de emergência no
território nacional e as medidas intensificavam-se. Foi suspenso o acesso de
visitas e acompanhantes, limitando ao máximo a circulação dentro do IPO. No
entanto, não podíamos perder o foco nas pessoas, pelo se promoveu a humanização
em tempos de COVID: para os doentes, como foram suspensas as visitas aos
doentes internados, foram promovidas visitas virtuais dinamizadas por equipa de
apoio psicossocial, facilitando a comunicação através de tablets, reforçando a
importância de os doentes manterem a proximidade com as famílias. Foi, também,
criada uma linha telefónica de apoio aos familiares. Da mesma forma foi
disponibilizado acompanhamento e apoio psicológico aos doentes e suporte às
famílias.
Em meados do mês de março, aumentava a ansiedade e o stress
nos profissionais, com os rostos e os sorrisos agora contidos numa máscara
cirúrgica, sendo o desafio, nesses tempos, o da gestão da incerteza e ameaça
que esta situação da pandemia acarreta, com reflexo em alterações emocionais.
Agora já não eram os outros num país muito distante, nós
agora éramos os “outros dos outros”. Por isso, foi disponibilizado atendimento
psicológico diário aos profissionais e uma linha de apoio telefónica, extensiva
aos profissionais em isolamento social ou quarentena, favorecendo respostas
adaptativas ao stress.
Os nossos profissionais adaptavam-se, reorganizando-se as
equipas e criando soluções: equipas rotativas, desfasamento de horários,
teletrabalho. Com a adoção do teletrabalho, começavam, também, a ganhar
robustez as consultas sem a presença dos doentes, sempre que a situação clínica
o permitisse, sendo alterada a tipologia das consultas para modo não presencial.
Por outro lado, as receitas totalmente desmaterializadas também foram
incrementadas e a 25 de março iniciou-se a remessa de medicamentos para o
domicílio dos doentes. As equipas desdobravam-se, com determinação, com gestos
de verdadeiro altruísmo, mas ainda estávamos em março e havia um longo caminho
a percorrer.
Antes do final do mês de março, houve a necessidade de
reestruturação dos circuitos e funcionamento do bloco operatório e inicia-se o
rastreio laboratorial sistemático de todos os doentes com indicação anestésica,
a par do rastreio clínico a todos os doentes cirúrgicos, sendo todos os doentes
propostos para cirurgia não urgente previamente testados para a COVID-19.
Em cumprimento das normas da DGS, e de forma muito precoce
iniciou-se, também, o rastreio a doentes submetidos a tratamento de
quimioterapia e radioterapia. Encetava-se, assim, o percurso de realização de
testes que, atualmente, ascende a 100 / 150 testes diários. A realização de um
volume cada vez mais crescente de testes acarreta um enorme desafio: gerir uma
nova dinâmica, mantendo o foco na missão do IPO.
O mês de abril, contudo, iniciou com uma contrariedade:
haviam sido identificados casos de infeção por COVID-19 em profissionais no
bloco operatório, circunstância que obrigou à suspensão temporária da atividade
cirúrgica programada. Mas a resiliência imperou. E, assim, em menos de 24 horas
impôs-se a identificação e contacto de todos os profissionais do bloco, numa
tarefa hercúlea, rastreando todos os profissionais cuja atividade se
relacionava com os casos positivos diagnosticados e higienizando, ainda,
durante o fim de semana os espaços, num esforço redobrado, para ser retomada a
atividade cirúrgica logo no início da semana. Sendo que as cirurgias em
contexto de oncologia assumem uma prioridade incontornável, manteve-se, sempre
sem paragens, a atividade cirúrgica urgente.
Ainda no mês de abril, foram reorganizados novos espaços,
tendo sido preparado um espaço dedicado à avaliação médica de casos suspeitos
com capacidade para 10 doentes. Por outro lado, foi readaptado um espaço no
Hotel de Doentes do IPO, tendo sido criado, a 13 de abril, um segundo Hospital
de Dia, a acrescer ao Hospital de Dia já existente, com vista à realização de
tratamentos sistémicos a doentes oncológicos provenientes de outros hospitais.
Iniciou-se o seu funcionamento, com doentes provenientes do Hospital Distrital
da Figueira da Foz, com capacidade para alargar oferta à Região Centro. Este
segundo Hospital de Dia foi devidamente equipado pelo IPO, tendo, ainda, sido
disponibilizados recursos humanos. Esta estrutura que funcionou até há pouco
tempo tinha uma capacidade de resposta a 12 doentes em simultâneo. O IPO de
Coimbra reforçava, assim, a sua missão enquanto Instituto dedicado à Oncologia
e referência da doença oncológica na Região Centro.
O desafio constante foi sempre o de promover uma boa gestão
da atividade assistencial, tendo-se mantido ao longo da pandemia toda a
capacidade de resposta em tratamentos oncológicos.
No final do mês de abril elaborou-se um plano de retoma da
atividade assistencial, a qual se potenciou durante o mês de maio, nomeadamente
com a retoma dos programas de rastreio e da atividade cirúrgica programada
(sendo que em meados de maio se recupera a 100% as salas de bloco disponíveis),
bem como o reforço do agendamento de consultas e exames. Foi feito um esforço
pelos Serviços para a retoma da atividade que havia ficado suspensa, sempre com
o foco na segurança.
Percebemos, contudo, que a confiança dos nossos doentes
teria de ser reforçada. Sentindo a ansiedade dos doentes e que a mesma se refletia
em faltas dos doentes aos seus agendamentos, foi aumentada a comunicação por
diversos meios, expressando que o hospital é um lugar seguro e que hoje, como
sempre, o nosso compromisso é cuidar. Difundiu-se informação em toda a
instituição para uma retoma em segurança, divulgando as boas práticas
implementadas.
O início de maio afigurava-se, assim, auspicioso, sendo que
na segunda quinzena de maio, inclusivamente, as atividades de ensino, formação
e investigação começam a ser retomadas. O mês de maio seria, ainda, o mês da
dinamização de testes serológicos na instituição e da divulgação de uma
plataforma para a requisição de pesquisa de SARS-COV-2, disponível no sistema
informático SClínico. Esta plataforma, desenvolvida com recursos internos do IPO,
permite uma ligação aos Cuidados de Saúde Primários, conferindo uma resposta de
proximidade.
Em suma, apesar do grande desafio que a pandemia nos
colocou, e continua a colocar, e que obrigou a um esforço de adaptação num
curto espaço de tempo, podemos dizer que o balanço é muito positivo.
As medidas foram tomadas atempadamente e a sua implementação
monitorizada sistematicamente. A prova dessa reação atempada, reflete-se num
número muito reduzido de casos diagnosticados, tendo todos sido detetados no
sistema de vigilância previsto no plano de contingência e delineado para o
efeito. Os resultados alcançados são fruto das medidas de prevenção e contenção
e de um esforço contínuo da Instituição, podendo afirmar-se que o IPO de
Coimbra é, de facto, uma Instituição segura e comprometida com a segurança de
todos.
Há, no entanto, que realçar que estes resultados só foram
possíveis graças à capacidade de adaptação e empenho dos nossos profissionais,
a quem não posso deixar de prestar o justo reconhecimento. Os profissionais de
saúde são os meus heróis verdadeiros. E como disse António Arnaut: “(…) os meus
heróis verdadeiros não vêm na história; não têm monumentos nas praças
domingueiras, nem dias feriados a lembrar-lhes o nome. São heróis dos dias
úteis da semana: levantam-se antes do sol e recolhem apenas quando a noite se
fecha nos seus olhos (…)”.
Estes profissionais são a prova irrefutável de que o Serviço
Nacional de Saúde, desde a sua fundação, não é uma utopia. Com a audácia e
trabalho dos seus profissionais, é possível converter as “tormentas” provocadas
por uma pandemia em “boa esperança”, como o próprio António Arnaut defendeu em
8 de fevereiro de 1978, na apresentação do programa do seu Ministério,
defendendo a criação do Serviço Nacional de Saúde:
“Não se trata de uma utopia. Porque o sonho se faz obra pelo
trabalho, pela perseverança e pelo calor humano dos actos. Realizaremos o
possível e procuraremos modelar o impossível para que o futuro o torne viável.
(…) Este programa pode ser acusado de excessivamente audacioso e talvez o seja,
face às limitações financeiras do País em geral e do sector em particular. Mas
a audácia é uma qualidade dos portugueses e por vezes a sorte protege os
audazes. Foi por isso que dobrámos o cabo e chegámos à Índia e que as
«tormentas» se transformaram em «boa esperança»” (fevereiro, 1978, Apresentação
do Programa do Ministério dos Assuntos Sociais).
Coimbra, 26 de junho de 2020