TODOS IGUAIS, TODOS DIFERENTES
Autor(es)
Carlota Quintal
Professora Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigadora do CeBER
‘Democrático’ não será um termo que se encontre nos manuais de Epidemiologia, no entanto, e sobretudo nos tempos iniciais da atual pandemia, muito se escreveu e falou sobre a natureza democrática do novo coronavírus. De facto, no Ocidente os países mais ricos foram os primeiros a serem afetados, e dentro destes, os afortunados viajantes constituíram as primeiras vítimas do vírus. Também não faltaram notícias sobre testes positivos em líderes políticos, em estrelas de Hollywood, em desportistas de alta competição e, mesmo aqui ao lado, o caso que nos marcou de um premiado escritor. Habituámo-nos aos alertas públicos e aos apelos ao confinamento social com a força da mensagem que ninguém tem imunidade. Tudo isto gerou a ideia que estávamos em presença de um novo vírus que a todos afetava e, por essa via, casava bem com o qualificativo de ‘democrático’. Que a todos afeta, já percebemos. Que não afeta a todos por igual, também.
Dois fatores de risco são a idade e a doença crónica. Em relação ao primeiro, somos todos iguais perante o vírus. Em relação ao segundo, só à primeira vista somos iguais. A evidência sobre desigualdades em saúde é robusta e não deixa margem para dúvidas sobre a desvantagem dos mais desfavorecidos, independentemente da escolha do indicador de estatuto socioeconómico e do indicador de estado de saúde, multimorbilidade incluída.
O impacto da recessão, do desemprego e da perda de rendimentos também não nos afeta a todos por igual. Estes efeitos vêm reforçar o círculo vicioso entre pobreza e saúde débil. E apesar das medidas de salvaguarda que têm sido adotadas, com maior ou menor intensidade, pelos vários países, também neste aspeto não somos todos iguais na capacidade de navegar o sistema e lidar com processos burocráticos, sem contar com quem está fora das estatísticas.
Não é propriamente novidade que as pandemias raramente têm um impacto uniforme nas populações. A peste negra, no século XIV, com um efeito devastador na população mundial, afetou desproporcionalmente os mais pobres, malnutridos e de zonas densamente povoadas. Tempos muito diferentes mas na pandemia atual também o risco de contrair COVID-19 não é de modo algum igual para todos. Este risco varia em função da necessidade de usar transportes públicos, da possibilidade de fazer teletrabalho (que por si está associado a profissões com salários mais elevados) e das condições de habitação que por sua vez condicionam o conforto do confinamento e mesmo a possibilidade de um isolamento eficaz. O recolhimento social tornou fulcral o acesso a canais de comunicação, com especial ênfase para o acesso à internet. Neste ponto, os mais vulneráveis serão certamente os mais carenciados, sobretudo idosos.
Há ainda a considerar a questão do acesso aos cuidados de saúde. Por esse mundo fora há já relatos de despesas muito penalizadoras para doentes COVID-19 sem seguro de saúde. Em Portugal, o Serviço Nacional de Saúde tem as portas abertas para os doentes COVID-19 mas a prioridade atribuída a estes doentes está a gerar desigualdades, algumas silenciosas, no acesso a outros cuidados de saúde. E como está bem estudado, as necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas sobrecarregam os suspeitos do costume.
Uma nota sobre as diferenças de género. Ao preparar esta crónica pretendi certificar-me do devido género do artigo definido que devia preceder a designação COVID-19. Não consegui obter um esclarecimento cabal sobre o assunto: encontrei tanto a expressão ‘a COVID-19’ como ‘o COVID-19’. Mas esta indiferença de género fica-se por aqui. Por um lado, as evidências possíveis sugerem um maior risco de saúde direto para os homens e em particular para os mais velhos. Reconhecida esta desvantagem inicial, a médio e a longo prazo tudo indica que sejam as mulheres as mais afetadas. Este é de resto um alerta deixado pelo secretário-geral das Nações Unidas. A pandemia afeta mais as mulheres por diversas vias, desde o constituírem a maioria dos trabalhadores da área da saúde, expondo-as ao risco de infeção, mas também o terem de desdobrar-se por inúmeras tarefas como o (tele)trabalho remunerado, trabalhos domésticos, o cuidado dos filhos, a educação escolar em casa e a assistência a familiares idosos. Acresce a violência doméstica e outras vulnerabilidades resultantes por exemplo da quebra da procura no setor têxtil onde as mulheres representam três quartos dos trabalhadores.
O convite para escrever esta crónica referia a partilha de experiências e das boas práticas. Dada a minha profissão, não tinha propriamente assunto do meu dia-a-dia para partilhar (mas revejo-me perfeitamente no desabafo aqui deixado pelo colega da Universidade de Aveiro sobre a avalanche de trabalho e iludiu-se quem pensou que iria ter tempo extra para dedicar à investigação). Mas o tema que mais tenho estudado é a desigualdade na saúde e no acesso aos cuidados de saúde. Desde que enveredei pela Economia da Saúde, passaram 20 anos. Nestas duas décadas, muito se investigou sobre desigualdades em saúde e no acesso aos cuidados de saúde; muitas iniciativas, mundiais, nacionais e locais, foram intentadas. No entanto, o relatório da OCDE, de 2019, Health for Everyone? Social Inequalities in Health and Health Systems, traça um cenário desanimador. A pandemia atual pouco tem de democrática e só deverá agravar as desigualdades pré-COVID.
Coimbra, 29 de junho de 2020