UNS E OS OUTROS

Uns e os Outros
em 2020-04-30 Ano: 2020
Crónicas de uma pandemia.png
Autor(es)

Cristina Fiúza

Administradora Hospitalar

Centro Hospitalar Universitário do Porto



Atentos e inquietos assistimos às notícias dos primeiros casos de Covid-19 no Norte de Portugal. O outro lado do mundo, de repente, fez-se perto… E agora? Como vamos viver? Os Hospitais de referência estavam identificados e eis que a mudança se instala: em tempo record foi necessário criar novas unidades e espaços dedicados, reinstalar serviços, reconfigurar circuitos, mudar procedimentos, capacitar profissionais, gerir o percurso dos doentes, controlar a ansiedade… sempre lutando contra o tempo e contando novos casos confirmados, ampliando a capacidade e criando novas e diferentes respostas.

Vigilantes da situação, combinámos desconfiança e medo com talento e visão, focados em resolver problemas e prevenir agravamentos, mitigando riscos e criando soluções.

Enquanto o mundo parecia parar lá fora, os Hospitais deparavam-se com os mais exigentes desafios – tratar os doentes Covid, proteger os seus profissionais – particularmente os da linha da frente - e acautelar as necessidades em cuidados de saúde de todos os demais utentes, agudos, crónicos, complexos, idosos, com multimorbilidades, medos e angústias.

Nos primeiros dias faltaram recursos, principalmente equipamentos de proteção individual (EPI’s) e solução antisséptica de base alcoólica (SABA), e rapidamente foram identificados casos positivos em alguns profissionais, maioritariamente associados a cadeias de transmissão exteriores à instituição – o inimigo instalou-se na trincheira…

A situação de Itália era bem conhecida, assustadora, fazendo-nos pensar na nossa insuficiência de meios, particularmente quando comparada a disponibilidade de camas de cuidados intensivos com a daquele País bem equipado… O que estaria para vir?...

Paradoxalmente víamos alguns despreocupados, desvalorizando a situação e afirmando “todos vamos ter, quanto mais cedo melhor!”... Alguns vieram mesmo a contrair a infeção, com maior ou menor impacto nas suas vidas e saúde, mas sempre subtraindo trabalho e talento à organização, em momentos de tanta necessidade.

Desde cedo assistimos a manifestações de solidariedade – empresas ofereceram equipamentos de ventilação e monitorização, a Câmara Municipal mobilizava-se para conseguir equipamentos e apoios, chegavam ofertas de unidades hoteleiras para instalação gratuita de profissionais, frotas de viaturas para o que fosse necessário, refeições completas, águas, sumos, refrigerantes, bolos, fruta, gelados, amêndoas, barrinhas energéticas, cremes hidratantes… a sociedade, reconhecida, a apoiar e “mimar” os que na linha da frente combatiam a epidemia…

Internamente foi necessário inovar: à falta de SABA pediu-se à indústria a disponibilização de matérias-primas e iniciou-se internamente a produção; para proteger os doentes mais frágeis estruturou-se a entrega ao domicílio de medicação crítica; organizou-se um centro médico de acompanhamento e resposta aos doentes em internamento domiciliário e um drive-thru para realização de testes.

Para proteger os profissionais, garantir uma reserva estratégica, minimizar contactos e promover o distanciamento, foram instituídas soluções de teletrabalho e evicção social. Identificaram-se os profissionais a considerar, estruturaram-se equipas em espelho, definiram-se atividades suscetíveis de reconfiguração, a disponibilizaram-se os meios necessários à concretização do trabalho a partir de casa.

Foi determinada a suspensão da atividade programada.

Tornou-se necessário pensar tudo de novo para resolver o dilema: como responder à pandemia e, em simultâneo, tratar todos os demais doentes, face à necessidade de confinamento e sabidos os riscos do cruzamento de contactos e das aglomerações de pessoas, algumas tão frágeis, que recorrem aos nossos serviços? Como responder às suas necessidades clínicas quando uma parte significativa dos doentes – cerca de 25% - não se dirigia já aos nossos serviços atento o receio de contágio?

O contexto de pandemia e a necessidade imperiosa de a conter determinaram uma concentração de meios e atenção aos doentes Covid-19, com retração da resposta ou reconfiguração do modelo de prestação às demais patologias, algumas muito graves, agudas, crónicas, e com necessidade de acompanhamento frequente e intervenção célere.

Essas centenas de milhar de doentes - que já acompanhávamos e que nos foram, entretanto, referenciados - têm constituído o foco principal de atenção da Direção da Consulta Externa, mobilizando toda a nossa energia e criatividade na estruturação de respostas que salvaguardem as suas necessidades clínicas e, em simultâneo, garantam a sua proteção da infeção pelo novo coronavírus, assim como dos profissionais que têm que os tratar.

Na Consulta Externa (CE) do Centro Hospitalar Universitário do Porto o modelo de prestação de cuidados sofreu uma transformação significativa, iniciada a 16 de março, que pretendeu salvaguardar o melhor interesse dos doentes que cuidamos evitando a sua deslocação ao Hospital, protegendo-os de contactos com potenciais infetados e mantendo o seu acompanhamento clínico, presencialmente, sempre que imprescindível, ou por telefone quando bastante e adequado.

Para o concretizar reconfigurou-se o modelo de trabalho: aos médicos foi pedida a avaliação clínica dos doentes constantes das suas agendas e a identificação das necessidades críticas para consulta presencial, definiram-se procedimentos de atuação visando a realização e registo de consultas sem a presença do doente, aproveitou-se o potencial da desmaterialização da prescrição, potenciou-se uma nova forma de orientação clínica e aconselhamento médico.

Os assistentes técnicos viram reajustada a sua intervenção: uns a partir de casa, e com equipamentos de comunicação disponibilizados para o efeito, passaram a contactar os doentes constantes das listagens, informando quais os procedimentos a adotar, antecipando contactos do médico assistente, prevenindo presenças desnecessárias no Hospital. Outros, mantendo a sua presença em postos de front office, procedem ao atendimento presencial, disponibilizam meios de desinfeção das mãos e máscaras aos doentes, encaminham-nos para a realização dos atos programados inadiáveis.

Os médicos atendem presencialmente os seus doentes identificados como mais críticos, assim como aqueles que viram agravada a sua situação clínica e procuram o seu apoio e, a partir dos seus gabinetes ou em teletrabalho, realizam consultas não presenciais: avaliam, diagnosticam, aconselham, orientam, prescrevem, requisitam meios complementares de diagnóstico e terapêutica.

A equipa de enfermagem, organizada em solução de evicção social, manteve a realização de consultas de enfermagem e dos tratamentos agendados.
Este modelo de prestação tem-se mostrado adequado às circunstâncias, que são de estado de emergência nacional, e tem revelado números impressivos e taxa de resposta satisfatória.

O desafio atual é a estruturação do “novo normal”. A evolução dos números da pandemia, a putativa ocorrência do pico em finais de março e a estabilização da curva apontam para a não renovação do estado de emergência após 2 de maio e para a necessidade de uma retoma paulatina, progressiva e gradual da normalidade, sempre com a prudência que a situação aconselha e preparados para a reversão de medidas instituídas perante a ocorrência de novos surtos.
Temos em curso o plano da retoma: estamos a avaliar a carga máxima admissível de presença humana nos edifícios e a promover a redistribuição dos atos programados ao longo dos dias, controlando e nivelando a procura programada, a rever o modelo de estruturação das agendas médicas e dos horários de funcionamento, a necessidade de manutenção e reforço de medidas gerais de proteção de utentes e profissionais, a definição de normas para higienização de espaços, a reavaliação de circuitos de entrada e circulação nos edifícios. Com estas medidas será possível ampliar o atendimento presencial e dar resposta à realização de atos que, contrariamente aos episódios de consulta, não prescindem da presença do doente e por isso aumentaram substancialmente a procura não satisfeita.

Há lições aprendidas que jamais esqueceremos, medidas de etiqueta social que não abandonaremos, procedimentos de segurança interiorizados para sempre. Passará algum tempo até que possamos abraçar de novo as nossas famílias, confraternizar com os nossos amigos, celebrar juntos ocasiões especiais, voltar às reuniões presenciais…

Por agora, e até lá, há que descobrir novas formas de humanização e continuar a tratar os nossos doentes, com a determinação de sempre, esperando diagnosticar atempadamente, tratar adequadamente, minimizar agravamentos previsíveis e mortes evitáveis… E, nos dias do futuro, quem sabe, avaliar o impacto das medidas tomadas na saúde dos doentes e na sua satisfação.


Porto, 26 de abril de 2020