MAIS TELE(SAÚDE) PARA UNIR UTENTES E PROFISSIONAIS
Autor(es)
Ricardo Mestre
Vogal Conselho Diretivo, Administração Central do Sistema de Saúde, IP
“A sociedade não será a mesma depois da COVID-19”. “A forma como nos relacionamos mudou para sempre”. “As novas tecnologias aproximam-nos”. “O teletrabalho fortalece a relação médico-doente”. “A telessaúde é fundamental para o processo de transformação dos sistemas de saúde”.
Estas são algumas das afirmações que ouvi e li nos últimos meses, e com as quais, no essencial, concordo.
Efetivamente, se é verdade que temos vivido a maior crise de saúde pública das últimas décadas, não é menos verdade que temos assistido à afirmação da telessaúde, entendida como a utilização das tecnologias de informação e comunicação para apoiar, à distância, a prestação de cuidados de saúde, a organização dos serviços e a formação dos profissionais.
A face mais visível desta afirmação tem a ver com a prestação direta de cuidados por parte dos profissionais de saúde, a denominada telemedicina, nomeadamente na componente das teleconsultas, que alcançaram uma abrangência e um volume de atividade que nem os mais entusiastas imaginavam possível, num tão curto espaço de tempo.
De repente, de forma criativa e espontânea, os profissionais de saúde começaram a recorrer às videochamadas, ao telefone, ao correio eletrónico e a outros meios digitais para efetuar consultas e seguir os seus utentes.
Durante o primeiro semestre de 2020, os médicos de família realizaram mais de 7,5 milhões de consultas não presenciais, cerca de 50% do total da sua atividade de consulta. As teleconsultas nos hospitais bateram recordes nas várias especialidades. Desenvolveram-se novas soluções informáticas para apoiar a gestão da pandemia e para o seguimento dos doentes em vigilância e em autocuidados, como é o caso plataforma Trace COVID-19. Criaram-se sistemas e aplicações móveis para rastrear os contactos das pessoas infetadas com o novo coronavírus.
Em resultado de tudo isto, o recurso à telessaúde deixou de ser uma resposta circunscrita a projetos locais, desenvolvidos por profissionais visionários e muito empenhados, ou a soluções pontuais para áreas assistenciais específicas, como a dermatologia, por exemplo. Passou a ser uma realidade que chegou de forma massiva a todo o país, envolvendo milhares e milhares de utentes e de profissionais de saúde, e quebrando barreiras geográficas, físicas e até culturais.
E isto aconteceu porquê?
Porque o contexto sanitário exigiu soluções inovadoras. Porque o acesso aos meios digitais é hoje mais fácil. Mas, principalmente, porque os profissionais de saúde assumiram a liderança deste processo e porque os utentes reconheceram a sua mais-valia.
Consolidar agora a utilização da telessaúde, nomeadamente na vertente das teleconsultas e da telemonitorização de condições de saúde, implica provar que ela não se aplica apenas em situações extremas e de contingência. Que não é uma moda passageira. Que não se cinge a uma discussão sobre tecnologias, sobre sistemas de informação ou sobre equipamentos de comunicação.
Consolidar estas respostas para o futuro implica assimilar novos conceitos, novas formas de prestação de cuidados e novas abordagens ao diagnóstico e ao tratamento, que incorporem os meios digitais na definição dos planos de cuidados mais adequados a cada pessoa concreta.
Implica saber que a telessaúde é, essencialmente, uma discussão sobre pessoas e sobre os seus direitos.
Sobre a vida de cada um de nós, utentes dos serviços de saúde, que temos o direito de aceder, atempadamente e de forma equitativa, aos cuidados de saúde de que necessitamos, prestados por profissionais especializados, de forma personalizada, com qualidade, comodidade e segurança.
Sobre médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, terapeutas da fala, assistentes sociais e tantos outros profissionais de saúde que querem estar ainda mais próximos dos seus utentes, que querem garantir a continuidade dos cuidados e que pretendem executar intervenções mais flexíveis, mais eficientes e mais adequadas às reais necessidades das pessoas de quem tratam e cuidam.
Sobre uma sociedade que exige mais foco nas soluções, que vê a transição digital na Saúde, e a telessaúde em particular, como uma oportunidade para eliminar práticas clínicas ineficientes e rotinas administrativas que não acrescentam valor, e para reforçar as políticas públicas de promoção da saúde, de prevenção da doença, de tratamento adequado, de reabilitação plena e de procura do bem-estar ao longo de todo o ciclo de vida.
Bem sei que a telessaúde não substituirá toda a atividade assistencial presencial e que continuarão a existir inúmeras situações clínicas e sociais em que os diagnósticos, os tratamentos e os cuidados têm de ser prestados com os profissionais e os utentes em contacto direto e em presença física, porque só assim terão o sucesso desejado. Essa é uma realidade inquestionável!
Mas também sei que há muitas intervenções em saúde que podem usufruir das respostas de telessaúde, com resultados clínicos idênticos aos que seriam alcançados com uma resposta presencial, mas com a inúmeras vantagens para todos, por minimizarem riscos desnecessários, evitarem deslocações e contactos dispensáveis e libertarem tempo e espaço para as respostas que têm mesmo de ser prestados em presença física.
É o caso da renovação da medicação crónica ou continuada para os utentes que têm o seu estado de saúde estabilizado, da partilha de resultados dos exames e dos testes de diagnóstico, da emissão desmaterializada de certificados e de declarações de saúde, da substituição de consultas subsequentes presenciais por teleconsultas hospitalares, nas situações aplicáveis, da telemonitorização de parâmetros vitais de pessoas que vivem com doença pulmonar obstrutiva crónica, com insuficiência cardíaca ou com outras doenças crónicas (diabetes, hipertensão, oncológicas, entre outras), ou do acompanhamento, pró-ativo e à distância, dos grupos populacionais mais vulneráveis, com mais idade, que vivem sós ou que estão institucionalizadas em estruturas residenciais para idosos, ou em instituições de acolhimento de crianças e jovens em risco, por exemplo.
Alargar as respostas de telessaúde a estas e a outras áreas é um ambicioso desafio que temos pela frente, e que devemos encarar com otimismo e determinação, alinhando os instrumentos de gestão em torno deste objetivo, ou seja, intervindo de forma coordenada na organização dos serviços de saúde e garantindo o ajustamento contínuo das políticas de recursos humanos, de sistemas de informação e de contratualização e financiamento dos cuidados de saúde.
Especial destaque terá de ser dado à modernização do quadro normativo que regula esta atividade, seja na sua perspetiva de regulação clínica, com a atualização das boas práticas assistenciais, com a redefinição das normas de qualidade, segurança, confidencialidade, entre outras, seja na perspetiva da regulação administrativa, com a harmonização das regras de registo, a especificação técnica dos procedimentos técnicos e a parametrização adequada dos sistemas de informação, entre outras, de forma a possibilitar a compreensão e a comparabilidade da atividade realizada no âmbito da telessaúde, incluindo o seu reporte nacional e internacional.
Este é um caminho necessário e que permitirá tornar a telessaúde como um instrumento prioritário para alavancar a retoma da atividade assistencial nos serviços de saúde, considerando a fase do combate à pandemia COVID-19 em que estamos e a necessidade de recuperar os níveis de resposta às restantes necessidades em saúde da população, e para transformar o setor da Saúde.
Se conseguirmos percorrer este caminho com rigor, rapidez e envolvendo todos os interessados, estaremos a reforçar o papel do Serviço Nacional de Saúde na nossa sociedade, a melhorar o acesso, a qualidade e a eficiência dos cuidados prestados e a ir ao encontro das exigências e expectativas dos utentes e dos profissionais de saúde. Esta é uma oportunidade que não podemos desperdiçar.
Lisboa, 10 de julho de 2020