O CATACLISMO QUE CHEGOU DE AVIÃO

O cataclismo que chegou de avião
em 2020-07-29 Ano: 2020
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Autor(es)

Teresa Machado Luciano

Secretária Regional da Saúde – Região Autónoma dos Açores


Desta feita, o cataclismo chegou de avião aos Açores, um arquipélago constituído por nove ilhas de povoamento assimétrico e disperso, frequentemente assoladas por fenómenos extremos, nas quais 243 mil almas rogam que da terra não brote fogo e do céu não se despenhe mais água do que os seus solos conseguem absorver.

Esta é a crónica de como a Região Autónoma dos Açores se preparou para algo outrora impensável e indizível, provavelmente o maior desafio com que gestores e profissionais da saúde se confrontaram nas suas carreiras.

Entre o surgimento dos primeiros casos de pneumonia em Wuhan, no início de dezembro, e a primeira morte causada pelo novo coronavírus naquela cidade chinesa, mantivemo-nos atentos, recolhendo informação, ponderando probabilidades, deitando contas aos recursos.

A 16 de janeiro, a Direção Regional da Saúde emitiu as primeiras orientações para os viajantes que se dirigiam às regiões afetadas.

No dia 26 de janeiro de 2020, quando surgiu o primeiro caso suspeito em Portugal, já o Serviço Regional de Saúde e o Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos Açores tinham em curso a preparação da resposta.

Os ponteiros do relógio giravam em ansioso atropelo. E a esperança de passarmos incólumes foi perdendo cor e peso na justa medida do acumular de casos positivos na Europa. 

Dos esforços de preparação, destacam-se a criação de um Grupo Técnico de Coordenação multidisciplinar e a atualização dos planos de contingência das unidades de saúde.

Em simultâneo, houve que proceder ao levantamento de recursos e necessidades em matéria de internamento, equipamentos para ventilação, capacidade laboratorial, recursos humanos, equipamentos de proteção individual e, sobretudo, preparação e formação dos profissionais.

Cooperação e partilha deram o mote, numa região onde só existe hospital em três ilhas e a rede de cuidados primários, ainda que extensa, é modelada de acordo com o número de habitantes, escasso em ilhas como Corvo (465), Flores (3.629) ou mesmo Graciosa (4.216 habitantes).

Perante a necessidade de informar, sensibilizar e tranquilizar a população, lançou-se a maior campanha de comunicação em saúde desenvolvida pela Região, envolvendo televisão, rádio, imprensa e internet.

O esclarecimento e o apoio ao cidadão foram definidos como eixos centrais na resposta, tendo sido criada a Linha Açores de Esclarecimento Não Médico Covid-19, para colmatar dúvidas relativas a emprego, segurança social e apoios sociais e económicos.

Foram ainda criados um site e um endereço de correio eletrónico específicos para esclarecer a população e aqueles que visitavam a Região sobre as medidas adotadas para prevenção e contenção da pandemia.

Implementou-se o algoritmo de rastreio e encaminhamento de casos suspeitos de infeção na Linha de Emergência Médica e reforçou-se a Linha de Saúde Açores – 808 24 60 24, alargandose instalações e a equipa e extinguindo-se os custos para os seus utilizadores.

Deu-se início à formação de profissionais de saúde e bombeiros para a correta utilização dos equipamentos de proteção individual e para o transporte de casos suspeitos e confirmados de infeção.

Estreitou-se a ligação às administrações dos portos e aeroportos e à reitoria da Universidade dos Açores, iniciando-se um processo de investigação epidemiológica de viajantes.

Sem hesitação, foi mobilizado um avultado investimento financeiro para melhoria das infraestruturas existentes, reforço dos recursos humanos e aquisição de equipamentos e dispositivos clínicos.

Perante a pressão da procura global por equipamentos, o Serviço Regional de Saúde desenvolveu um trabalho cooperativo entre todas as unidades de saúde na gestão e negociação com fornecedores internacionais.

O orçamento das unidades de saúde de ilha e dos hospitais regionais foi reforçado e fez-se um investimento substancial em equipamentos de proteção individual, parcialmente transportados num voo realizado pelo grupo SATA à China, que granjeou o reconhecimento da população.

Aumentou-se a capacidade de testagem dos dois laboratórios de referência regionais e foram criados mais dez quartos de pressão negativa no Hospital do Divino Espírito Santo, em Ponta Delgada.

A este esforço de investimento público, juntaram-se cidadãos e entidades privadas, cujos donativos permitiram a aquisição de extratores de RNA e o reforço do Serviço Regional de Saúde com três dezenas de ventiladores e monitores de sinais vitais.

A resposta ao surto pandémico extravasou, largamente, o espectro dos cuidados de saúde e impôs uma abordagem multissectorial.

O escalonamento dos estados de prontidão previstos no Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região Autónoma dos Açores permitiu adequar a resposta em função da severidade do quadro epidemiológico de cada uma das nove ilhas.

Foram tomadas decisões difíceis, mas corajosas, como a declaração do estado de alerta para toda a Região, a 13 de março, véspera do surgimento do primeiro caso positivo de Covid-19 no arquipélago.

Foi decidido o encerramento de todos os estabelecimentos de ensino na Região, assim como de estabelecimentos de diversão noturna, cinemas, ginásios, estabelecimentos comerciais não essenciais, entre outros, reduzindo assim a concentração e circulação de pessoas na via pública e em recintos fechados.

Foi suspensa a autorização de atracagem de navios de cruzeiro e iates nos portos e marinas dos Açores.

Suspendeu-se integralmente a atividade da SATA Air Açores, tanto no que diz respeito à ligação ao exterior, como às ligações interilhas, com exceção do transporte de carga, abastecimento e situações de força maior.

Impuseram-se cordões sanitários na Povoação, contendo-se a mais extensa cadeia de transmissão local, e depois nos restantes cinco concelhos de São Miguel.

No plano sanitário, foi determinado, primeiro, o confinamento obrigatório de todos os passageiros desembarcados nos Açores, em unidade hoteleira designada para o efeito, por 14 dias.

Posteriormente, os passageiros passaram a poder escolher entre apresentar comprovativo de teste realizado nas últimas 72 horas, fazer teste à chegada ou após quarentena voluntária de 14 dias em unidade hoteleira, podendo fazer isolamento profilático na sua residência ou noutro alojamento.

Mais tarde, determinou-se que os passageiros deixariam de estar sujeitos a isolamento profilático, mantendo-se a necessidade de teste negativo feito antes da viagem ou à chegada aos Açores, bem como de repetição do despiste ao sexto dia após a primeira análise.

Mais recentemente, alargou-se a rede de laboratórios da Região ao território continental português e à Região Autónoma da Madeira, através de convenção, incentivando a que os passageiros cheguem aos Açores com teste negativo.

A par da resposta à crise sanitária, foi necessário preparar a retoma, salvaguardando a atividade económica, mas também a resposta ao possível surgimento de nova vaga pandémica nos Açores.

No âmbito do Serviço Regional de Saúde, Unidades de Saúde de Ilha e Hospitais elaboraram os seus planos de recuperação, integrando objetivos e atividades prioritárias, de acordo com as especificidades de cada unidade de saúde e da comunidade que esta serve.

Assim, chegámos ao que poderá ser o momento mais difícil de todos. O momento em que, apesar do cansaço, temos de agarrar com mãos seguras e ágeis a recuperação da atividade assistencial, ajustar a oferta de cuidados às necessidades emergentes da crise social e económica decorrente da pandemia, garantir a segurança de todos, dentro e fora das nossas unidades de saúde.

“Andrà tutto bene”, de Cristóvam e Pedro Varela, um projeto de esperança nascido na ilha Terceira, foi a banda sonora desta pandemia. Olhando para trás, operámos pequenas e grandes obras. E mesmo que saibamos que nem tudo vai ficar bem, sabemos que aprendemos. Estamos todos mais preparados para proteger a nossa comunidade.

Angra do Heroísmo, 19 julho 2020