Saúde mental: Pandemia e desigualdades
Autor(es)
Maria João Heitor
Presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM)
Vivenciamos uma crise com origem biológica, uma pandemia viral, com impactes na saúde, no funcionamento da sociedade e na economia. Esta crise é resultado do vírus enquanto gerador de patologia, assim como do empobrecimento das nações pela diminuição da produção de bens, desaparecimento de atividades económicas, desemprego, incumprimento de obrigações bancárias com risco de perda de habitação e redução de coleta fiscal. Conjugou-se o empobrecimento dos Estados com o das famílias.
Neste contexto, aumentam a morbilidade psiquiátrica, as adições (p. ex., álcool, drogas, videojogos), violência doméstica, abusos e maus-tratos. A idade (sobretudo, entre os 18 e os 29 anos) e o sexo (mais nas mulheres), bem como sofrer de uma ou mais patologias ou incapacidades, e a desvantagem socioeconómica são alguns dos determinantes de ansiedade e depressão. Pode igualmente surgir perturbação de stress pós-traumático, em particular, nas pessoas que estiveram em quarentena ou isolamento por infeção com SARS-CoV-2, assim como nos profissionais de saúde que trataram doentes com COVID-19. Estamos a lidar com um vírus que pode conduzir a complicações neuropsiquiátricas, por via de tropismo para o sistema nervoso central (SNC).
Temos, por conseguinte, impactes na saúde mental pelos efeitos da infeção no SNC, por condicionantes psicossociais, pelo efeito na economia e por maior probabilidade de aparecimento de novas perturbações ou de recorrência/exacerbação de situações preexistentes. Tudo isto pode contribuir para reduzir a resiliência e a capacidade de lidar com situações indutoras de stress.
Neste quadro, a psiquiatria e a saúde mental são insubstituíveis na identificação e abordagem de problemas que decorram do impacte da pandemia e da crise económica. Uma saúde mental positiva tem um papel preventivo e reparador. É importante investir em autocuidados básicos e mobilização de recursos que promovam o bem-estar e a resiliência pessoal, e que ajudem a prevenir o sofrimento psicológico.
Os serviços de saúde mental do Serviço Nacional de Saúde e do setor social da saúde têm de estar atentos e preparados para responderem às perturbações neuropsiquiátricas que surjam. Mas não podemos descurar os indivíduos que já estejam a ser acompanhados, em particular aqueles com doença mental mais grave ou com deficiência intelectual.
O acesso aos serviços ficou comprometido no confinamento. Há que criar mecanismos para evitar atrasos de diagnóstico, falhas na prescrição e no acesso aos tratamentos e consequente descompensação clínica com pior evolução das doenças. Temos de reforçar a articulação entre serviços de saúde mental, cuidados de saúde primários e saúde pública.
As teleconsultas, idealmente videoconsultas, são um recurso útil, embora não substituam a consulta presencial. Contudo, minimiza-se o risco de aglomeração de doentes em salas de espera, poupa-se tempo nas deslocações e há diminuição de gastos em transportes.
Mas não chega o papel da saúde. Têm de existir ações que mobilizem outros setores como a segurança social, educação, emprego, autarquias, ambiente, economia, justiça, transportes, habitação, agricultura e cultura, IPSS e ONG. É com este envolvimento intersetorial que conseguiremos fazer a diferença em prol da saúde mental e do bem-estar, numa perspetiva de saúde mental em todas as políticas.
Não nos podemos esquecer de que, além da resiliência já mencionada, há outros fatores protetores, tais como dar e receber suporte social, manter passatempos e atividades de lazer, e rotinas.
Para lá de novas formas de atendimento às necessidades dos doentes, têm de existir condições que permitam às pessoas sair de casa, utilizar espaços de lazer, trabalhar presencialmente em grupo ou em teletrabalho, conviver, enfim, interagir com os outros. A perda de liberdade e as limitações na matriz social têm impactes ainda maiores em pessoas que sofram de uma perturbação mental.
Quais são estes impactes?
Fazem-se sentir ao longo do ciclo de vida: desde os recém-nascidos (que sejam privados da relação precoce com a mãe se esta for covid positiva, com as possíveis consequências de uma vinculação deficitária), até aos idosos com doença mental, incluindo aqueles com demência, que possam estar mais isolados ou abandonados.
Também no acesso aos serviços, em que há o risco do binómio da continuidade e proximidade de cuidados ficar comprometido; na atenção ao doente como um todo, pois se até aqui as comorbilidades somáticas das pessoas com doença mental eram por vezes negligenciadas, agora corremos o risco destas comorbilidades (cardiovasculares, cancro, obesidade, diabetes e outras) passarem mais despercebidas e serem relegadas para segundo plano, com aumento de mortalidade; no acompanhamento continuado dos doentes, incluindo os recuperados da COVID-19.
Será que todos os serviços continuam a garantir o acesso e a resposta aos cuidados especializados de psiquiatria, nos doentes já em seguimento, assim como a novos doentes? Perante problemas desta dimensão – pandemia e crise económica – temos de reduzir diferenças e desigualdades que eventualmente tenham surgido ou agravado. Temos de criar sinergias para que os serviços de saúde mental continuem a dar as melhores respostas a todas as populações que servimos, sem exceção. E as medidas de mitigação dos efeitos negativos da pandemia e da crise económica devem ter uma coordenação intersetorial central, regional e local.
É, igualmente, importante produzir mais investigação sobre os efeitos da pandemia de SARS-CoV-2 na saúde mental, e sobre as possíveis associações de má saúde mental com o risco de morbilidade e mortalidade associada à COVID-19. E as pessoas com doença mental não estarão em desvantagem quanto ao cumprimento de medidas básicas de proteção individual? Qual a melhor forma de atuar preventivamente sobre esta população?
Simultaneamente, é fundamental conduzir avaliações de impacte na saúde mental e bem-estar, de forma a compreender, a priori, os impactes e identificar ações e recomendações que ajudem a desenvolver resiliência e a mitigar as consequências negativas da pandemia no bem-estar mental, em particular nos grupos mais vulneráveis.
Podemos afirmar que a experiência com a COVID-19 não é só negativa, está a ser pedagógica. Apesar do distanciamento social, nunca, como agora, se tem sentido uma onda de solidariedade tão forte. Temos de evitar a desintegração social e criar alternativas para fortalecer vínculos, aumentar a coesão e o capital social e mental. Esta ameaça instalou-se abruptamente, levou a um confinamento sociofamiliar, e não houve tempo para que as pessoas e a sociedade se adaptassem.
A experiência e conhecimento adquiridos vão seguramente ser úteis, para novas respostas: em Psiquiatria, Saúde Pública e Saúde Mental Pública.
Vivemos uma pandemia globalizada que veio interromper as coisas mais simples que tomávamos por garantidas. Há que reinventar novas intervenções comunitárias; redimensionar a atuação na pobreza e exclusão social; redefinir indicadores para leitura como os sujeitos sentem e pensam; perceber vivências particulares advindas do processo de desigualdade social.
A Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM) pode ajudar a quatro níveis: apoio e defesa dos direitos dos doentes e famílias junto dos decisores políticos; informação e formação com promoção do conhecimento, partilha de experiências e de boas práticas; investigação-ação e divulgação de resultados; interface entre subjetividade e sociedade, numa perspetiva ético-política e numa dimensão biopsicossocial e de redução do estigma.
Deste modo, a SPPSM deve juntar-se não apenas à voz dos profissionais e peritos nacionais e internacionais (médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, administradores hospitalares, académicos, e muitos outros) e das instituições, que têm contribuído para a boa gestão do atual momento, mas também à voz dos indivíduos que procuram diariamente gerir as suas vidas.
Lisboa, 1 de setembro de 2020