COVID-19 - CRÓNICAS DE UMA PANDEMIA

COVID-19 - Crónicas de uma Pandemia
em 2020-05-08 Ano: 2020
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Autor(es)

Paula Alexandra Alves Pimpão

Enfermeira, coordenadora da Unidade de Cuidados na Comunidade de Arraiolos do ACeS do Alentejo Central 

Agradeço à APDH o presente convite e do Alentejo aqui vai um singelo contributo na voz de uma enfermeira. O meu nome é Paula, sou enfermeira e coordenadora da Unidade de Cuidados na Comunidade (UCC) de Arraiolos do Agrupamento de Centros de Saúde do Alentejo Central (ACeS, AC).

Perante o desafio da APDH pergunto-me como vos posso transmitir o que me vai na alma, a minha partilha de experiências, os meus medos, receios, angústias e dinâmicas perante uma situação tão delicada como esta que estamos a vivenciar. Porém, eu e a minha equipa acreditamos que esta crónica será uma forma de "imortalizar" o que estamos todos a viver, e de certa forma "dar voz" às equipas, nas pessoas que as constituem.

A 18 de Março de 2020 foi decretado o estado de emergência em Portugal, através do Decreto do Presidente da República e fomos embutidos por uma situação na qual a maioria de nós nunca tinha passado, uma guerra mundial contra um inimigo invisível que conseguiu parar a correria do mundo, alguma poluição, colocar pessoas em casa, abrandar a degradação ambiental e em pouco mais de um mês tudo mudou nas nossas vidas: em casa, no trabalho, no meio social, na educação dos filhos, nos tempos livres, … Já não há abraços, cumprimento com beijinho que os utentes tanto gostavam ou outro tipo de contacto mais próximo e os nossos cumprimentos diários foram substituídos por um acenar de mão, ao bonito estilo da rainha de Inglaterra.

Na minha singela, mas eficiente equipa multiprofissional na UCC de Arraiolos a 16 de Março também tudo mudou e os profissionais ficaram reduzidos a duas enfermeiras, pois os restantes colegas (cuja maioria estão nesta unidade protocoladas e a tempo parcial) avançaram para Teletrabalho. Uma adaptação diária foi necessária, o plano de contingência elaborado e cumprido e fomo-nos consolando, moldando e adaptando. Mas sempre com o foco de manter boas práticas e uma eficiente prestação de cuidados aos utentes da nossa área de intervenção.

E depois foi conciliar tudo isto com o papel de mãe, professora (filha no 4º ano), educadora de infância (filha no pré-escolar) e pelo meio cozinhar, lavar e conseguir dar uma “limpeza porca” à casa, pois não sei de onde vem tanta poeira …

Um turbilhão de mudanças …

Depois do primeiro embate, confesso que senti imensa necessidade de voltar a juntar a equipa e realizámos a 1ª Reunião Virtual da UCC, que não tendo sido propositado muito se adequa à presente crónica, pois nela por escrito transmiti às colegas as dificuldades sentidas:

“Olá colegas,

Espero que estejam bem. Temos falado de forma individual pelos diferentes meios alternativos que temos neste momento (mail, telefone, computador…), mas hoje senti necessidade e decidi escrever para todas. Acho que a partir de agora deveremos ir usando este canal para colocarmos as nossas ideias, medos, apoios e sugestões enquanto equipa, pois não sei quando nos reencontraremos pessoalmente!

Ponto da Situação ao dia de hoje:

Isto está tudo revirado! Já não se entra pela porta principal do Centro de Saúde (isto é só um pormenor para vos dizer que mudou mesmo tudo). O medo está instalado nas pessoas, nas comunidades. Os utentes sentem-se abandonados e não percebem porque agora não têm direito a nada. Os profissionais choram. Acho que estamos a morrer lentamente todos os dias e num processo de luto patológico. Tudo o que é certo hoje, amanhã pode não ser…

Todos os dias recebemos normas novas, orientações, pedidos de todo o lado. Neste momento estamos a trabalhar no caos e na incerteza.

Espero que não cheguemos lá, mas temos uma alta probabilidade de enlouquecer dentro de pouco tempo!

Hoje não dormi e como sabem às vezes de noite temos ideias luminosas e hoje foi o que tinha de vos escrever e partilhar com todas o que se vai passando. Não tem sido fácil sequer fazer isto, pois só os três telefones que tenho tocam de uma forma descontrolada e esta longa carta teve várias paragens até ficar completa.”

(excertos da 1ª Reunião Virtual da UCC Arraiolos)

(…)

Porém, não podemos desanimar e este desabafo foi substituído pela esperança de dias melhores e pela procura de motivação para enfrentar esta fase menos boa das nossas vidas. Parece que neste momento todos procuram a nossa atenção na esperança de termos a solução para o problema, mas com muita pena minha somos todos humanos e estamos todos no mesmo barco …

As respostas das colegas foram variadas e disponibilizaram-me o apoio psicológico e emocional, que tanto reivindicam os nossos utentes e famílias e para os quais temos imensas limitações. Criou-se a partir daqui uma nova dinâmica de trabalho e de boa prática. O que antes passava pelo contacto direto comigo foi adaptado e passou a ser feito numa dinâmica de grupo. Descobrimos o Teams e o Zoom e passámos a utilizar estes meios enquanto equipa semanalmente. Qualquer coisa que fosse necessária diariamente seria tratada pelo grupo do WhatsApp.

A mensagem que queria sublinhar nesta crónica é que as colegas e as equipas são magníficas. Todos juntos somos mais fortes, como diz a canção publicitária e é uma grande verdade. Equipas de todos os níveis de cuidados são essenciais para manter o sistema e os profissionais de saúde de pé e temos sempre de nos apoiar mutuamente, pois só assim tudo faz sentido.

Queria muito agradecer as palavras de apoio que tive das colegas e passá-las para todos os profissionais de saúde, que como eu nestes dias menos bons e com a saúde mental fragilizada precisam de um empurrãozinho, um miminho e uma palavra de apoio. Com autorização das colegas vou deixar alguns conselhos dados para mim, mas que podem certamente servir para todos. Porque todos somos mais fortes.

“Pode ser estapafúrdio e pensarem “ai e tal ela está em casa e é fácil falar” … Atenção à saúde mental Paula, por mais que seja difícil, tens de procurar por arranjares tempo para fazeres coisas que gostes de fazer. Olha para as tuas filhas!!! (…). E sabes…. Além de te considerar minha colega, considero-te uma grande amiga. GOSTO MUITO DE TI!!! Por isso, depois disto passado, vamos tratar de combinar uma almoçarada ou um jantar… e dar umas belas gargalhadas.”

(…)

 “Antes de mais queria dar-te, Paula um grande abraço!”

(…)

“Esta deverá ser, sem dúvida a altura mais difícil e exigente, em termos profissionais, por que tens passado e não estranho este teu email, depois da conversa telefónica que tive contigo na terça feira. Como sempre tens mantido o espírito de liderança, de perseverança e de força! Tenho a certeza que estas características têm-te ajudado a ti e às colegas que te rodeiam! O teu desgaste e cansaço é natural face a esta situação caótica e ainda bem que nos escreveste a pedir ajuda!

(…)

“Revemo-nos temerosos e perdidos em que nos demos conta de estarmos todos no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários, todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos TODOS,TODOS.”

(…)

“Este é sem dúvida um momento de desafios e o maior é interior. Um momento de mostrar o melhor de nós, de realçar o que é importante como pessoas e como Profissionais.”

E de fato, eu e a colega Cristina mantivemo-nos firmes no terreno e apoiámo-nos mutuamente, fazendo uma gestão diária das áreas essenciais (ECCI e ECL). Reforçámos a atividade domiciliária, em articulação com outras unidades funcionais; garantimos o atendimento telefónico e electrónico durante o período de funcionamento da UCC; colaborámos com as autoridades locais e disponibilizámos informação para entidades comunitárias do tipo SAD ou IPSS e disponibilizámos meios não presenciais de atendimento para esclarecimento de dúvidas.

As colegas em teletrabalho colaboraram na necessidade de manter actualizada a informação e comunicação na equipa de saúde, assim como no reforço de atividades não presenciais de educação para a saúde, divulgando nas redes sociais uma maior literacia em saúde, com o intuito de diminuir a ansiedade face à situação.

No cenário atual, temos mais incertezas que verdades absolutas e cada dia é único. Porém, acreditamos que melhores dias virão e mantemos um sorriso no olhar todos os dias especialmente por sabermos que fazemos a diferença na vida de todos os que visitamos diariamente, cujo feedback é de um radiante agradecimento!

Agradecimentos à minha Equipa – Ana Sofia Veloso; Ana Raquel Lucas; Celeste Travessa; Joana Antunes; Sara Santos; Margarida Miranda; Mª Cristina Carochinho e Margarida Evaristo.

Arraiolos, 01 de maio de 2020